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Ex-BBB Maria Bomani estreia no cinema como líder do tráfico: "Colocou o filme no bolso", diz diretor

Longa de João Wainer reúne atriz com Natália Deodato, seu desafeto no reality show: 'Poder estrear juntas em um filme como este é sensacional', diz

Maria Bomani como Rebeca em 'Bandida', filme de João Wainer - Divulgação

No começo de “Bandida: a número um”, a protagonista Rebeca, vivida, criança, pela influencer Michely Gabriely, é vendida pela família ao bicheiro que mandava na Rocinha em 1977, antes da chegada do tráfico.

Amoroso, vivido por Milhem Cortaz, mantinha um harém na comunidade da Zona Sul do Rio com dezenas de meninas que violentava sem qualquer punição do poder público.

O filme estreou ontem nos cinemas do país no momento em que repercute na sociedade o chamado PL Antiaborto, projeto de lei que equipara o aborto legal acima de 22 semanas ao homicídio, mesmo em caso de estupro.

— Uma criança não está preparada para gerar outra, ainda mais de forma violenta. Fui vítima de estupro aos 15 anos, por um ex-namorado. Só entendi isso no ano passado, na terapia, e hoje consigo falar sobre o que aconteceu, mas o sentimento de impotência marcou minha vida para sempre. Como é que se quer agora culpabilizar e criminalizar a vítima, e com uma pena ainda maior do que a de quem cometeu o crime? — pergunta a atriz e cantora Maria Bomani, que vive Rebeca na adolescência e na vida adulta, quando se torna a primeira mulher a comandar o tráfico na Rocinha.

 

Em tempo: Maria foi a Verena da novela das nove “Amor de mãe”, da TV Globo. Na trama, sua personagem tinha um filho fruto do estupro e acabou tratando do caso publicamente.

‘Sobrevivente’
Dirigido por João Wainer (“A jaula”), “Bandida: a número um” tem 1h22 e é inspirado no romance autobiográfico “A número um”, lançado em 2015 por Raquel de Oliveira. A escritora e pedagoga foi namorada do traficante Ednaldo de Souza, o Naldo, nos anos 1980, comandou o movimento, abandonou o crime, trata desde então da dependência química e segue vivendo no bairro.

— Sou respeitada aqui, e quem manda hoje no tráfico foi meu aluno na escola. A literatura me salvou, sou uma sobrevivente. Nesses 35 anos, a Rocinha e o crime mudaram, mas vivemos uma paz negociada. E há muitas meninas se prostituindo, fazendo sexo oral em troca de cocaína. É isso o que deveríamos estar discutindo e não essa lei maldita — diz Raquel, de 63 anos, que se emocionou ao ver o filme e ficou impressionada com a atuação da ex-BBB.

Maria e Raquel só se conheceram em um evento de imprensa, na semana passada. A atriz de 23 anos é cria da Cidade Alta, conjunto habitacional de Cordovil, na Zona Norte do Rio, que recebeu, na ditadura militar, moradores removidos das favelas da Praia do Pinto e do Parque da Gávea, na Zona Sul.

— Mas não é porque também tive de lidar com o estigma de crescer em uma comunidade que a história da Raquel é próxima do que vivi. A geografia, o momento histórico e minha vivência de favelada foram outros. Encontrei a personagem nos sentimentos de abandono, de tristeza, de ter de se defender sozinha dos homens — diz a atriz.

O diretor João Wainer diz que Maria pegou o filme, colocou no bolso e o tomou para si. Sua interpretação é visceral, e a atriz levou um “susto bom” ao se ver na tela grande:

“Bandida” foi filmado em 25 diárias e tem a favela do Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul, como principal cenário das externas. No alto do morro, a produção encontrou casas de pau a pique que lembravam a Rocinha dos anos 1970. Imagens de arquivo e o uso de uma câmera Betamax ajudam a confirmar a sensação de que se voltou no tempo. Iluminação e câmera imprimem o thriller de uma linguagem documental, próxima do diretor de “O mês que abalou o Brasil”. E a narração na primeira pessoa conduzida por uma mulher, em três momentos diversos de sua vida, até os anos 1990, traz outro elemento original à estética do favela movie.

Com o bonequinho sentado, olhando, o crítico do Globo Daniel Schenker atenta para “Bandida” remeter a “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. “Como no filme de Meirelles, Wainer coloca o público diante de uma mistura de choque de realidade e entretenimento repleto de adrenalina. O mundo violento de Rebeca é mostrado através de vertiginosas sequências de ação”, escreve.

— Foi quase um estudo, (para ver) até onde dava para ir. Experimentar sobre um gênero que parece, mas não sei se me expresso mal, um pouco gasto — diz Wainer.

Mais do que o ponto de vista feminino de uma história de crime, diretor e protagonista enfatizam a qualidade da matéria-prima para o roteiro assinado por Wainer com Patricia Andrade, Cesar Gananian e Thais Nunes.

— O livro (esgotado nas livrarias) é quase uma fábula ao descrever as emoções, o universo, o ambiente da Raquel, com muita sutileza. É sensação, mais do que história — diz o diretor.

Ex-BBB Natália como companheira de set
Convidado pela Paris Filmes para o projeto, o diretor João Wainer conta que jamais pensou em outra pessoa para viver a Rebeca de “Bandida: a número um”.

— Para a protagonista, queria uma atriz com energia que sincronizasse com a da personagem. Maria juntava tudo. O episódio do BBB não foi determinante, mas mostrava um aspecto dessa personalidade dela — diz Wainer.

Maria passou um mês no BBB em 2022. Foi eliminada após jogar um balde na cabeça de Natália Deodato, que, curiosamente, faz agora Gigi, amiga de Rebeca. Da passagem meteórica e polêmica pelo programa, ela diz que não tirou grandes sacadas para a carreira, mas tem clareza de que a ajudou “a ser mais notada”. E ter Natália no set “foi muito legal”.

— Desde o convite, conversamos sobre tudo. Poder estrear juntas no cinema em um filme como este é sensacional — diz.

Houve identificação imediata das sisters com um recorte de Rebeca e Gigi.

—As duas personagens, como bem diz a Natália, são como nós, mulheres focadas em seguir em frente, apesar das circunstâncias. Nas filmagens, vibramos juntas — conta Maria.

A escritora Raquel de Oliveira entrou na vida bandida cedo e aos 15 anos já havia “matado uma pessoa”. Rebeca, por sua vez, usa armamento pesado, e o cartaz do filme a traz com um fuzil, à frente, com outros criminosos, todos homens, desfocados ao fundo. As principais fontes de informação para a construção da personagem foram, diz Maria, livro e roteiro. Mas ao ser questionada sobre mais inspirações, vindas da multiplicação de poderosas chefonas no audiovisual (da Bibi Perigosa de Juliana Paes da novela “A força do querer”, da Globo, à “Griselda” de Sofía Vergara na série da Netflix), ela se lembra do que pode ser traduzido como premonição.

— Sou fã da Teresa Mendoza que a Kate Del Castillo faz em “A rainha do tráfico”. Adoro como ela se torna comandante de organização criminosa e as histórias de amor que vive. Não perdia um capítulo, mas pensava não estar ao meu alcance fazer alguém como a traficante mexicana dela — diz.

Maria cita os romances vividos por Teresa na produção da Telemundo inspirada no livro do espanhol Arturo Pérez-Reverte e destaca que “Bandida”é também a história de amor de Rebeca com o Pará de Jean Amorim. Ao escapar, em cena que bebe do realismo fantástico, do destino das outras meninas da casa-prisão do bicheiro Amoroso, Rebeca se torna funcionária da contravenção. A vida muda com a chegada do primeiro traficante de cocaína a dominar a Rocinha, Del Rey, vivido pelo cantor Otto. Pará se une a ele. O personagem foi inspirado no traficante Naldo. Ele e Raquel se conheceram na pré-adolescência.

— Ao vê-los na tela, foi inevitável não pensar que, naquela época, não pude sequer chorar por meu amor — diz Raquel, que busca editora interessada em relançar “A número um” e publicar um livro ainda inédito.