IRÃ

Após morte de Raisi, Irã escolhe novo presidente em meio a apatia da população

Candidato reformista aparece na frente nas pesquisas, mas disputa deve ir para o segundo turno; comparecimento promete ser baixo, repetindo as últimas votações

Candidatos à Presidência do Irã antes de debate transmitido pela TV estatal IRIB - Morteza Fakhrinejad/Irib/AFP

Pouco mais de um mês depois da morte de Ebrahim Raisi em um acidente de helicóptero, os iranianos vão às urnas escolher o novo presidente, em uma votação marcada pela apatia, por divergências entre os aliados mais ferrenhos do regime, e já trazendo para debate a discussão sobre uma sucessão futura, a do líder supremo, Ali Khamenei, que já movimenta as engrenagens políticas locais.

Segundo as pesquisas, a disputa deve ser resolvida apenas no segundo turno, marcado para sexta-feira que vem. Único reformista liberado para concorrer, o médico Masoud Pezeshkian lidera com até 30% das intenções de voto, seguido pelo ex-chanceler Saeed Jalili e pelo presidente do Parlamento, Mohammad Bagher Ghalibaf, ambos conservadores e virtualmente empatados em segundo lugar. Há um número elevado de eleitores indecisos.

 

Para que alguém seja eleito no primeiro turno, ele precisa conseguir mais de 50% dos votos, algo que tem acontecido em todas as eleições desde 2009.

Na reta final da curta campanha, encerrada na noite de quinta-feira, Pezeshkian tentou se apresentar como o candidato das minorias étnicas — ele vem da região do Azerbaijão Ocidental —, e de todos que estão descontentes com as políticas adotadas nos últimos anos no Irã. Em busca do apoio das ruas, o reformista usou símbolos de levantes passados, como os de 2009, contra a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad (2005-2013), e fez críticas ao uso obrigatório do véu, fator central nos protestos de 2022, que deixaram mais de 500 mortos.

Mas o principal desafio de Pezeshkian não é fazer as pessoas acreditarem em suas propostas, mas sim fazê-las sair de casa para votar. Diante da repressão crescente a dissidências e críticas, seja por causa do véu, da economia, da exclusão de candidatos reformistas ou da percepção de que as vozes da população não estão sendo ouvidas, a saída para muitos é o boicote. E as promessas reformistas não ecoam com a mesma força vista no final do século passado.

“A facção reformista controlou os principais centros de poder no Irã, como a Presidência e o Parlamento. No entanto, apesar das suas promessas de ‘reforma’ e de aumento das liberdades civis, o seu governo foi marcado por repressões sangrentas, e os iranianos já não se deixam enganar por tais promessas falsas e impossíveis de cumprir”, escreveu Holly Dagres, pesquisadora do centro de estudos Atlantic Council, em artigo publicado na semana passada.

As duas últimas eleições nacionais — presidencial em 2021 e parlamentar em março — tiveram índices de comparecimento abaixo de 50%. Pesquisas apontam para um cenário parecido nesta sexta-feira, em um movimento liderado especialmente pelos jovens. A própria decisão de permitir que Pezeshkian concorra é considerada uma forma do regime tentar aumentar o número de eleitores.

— 90% dos jovens estão tentando convencer os demais a não votar, ao invés de decidir em quem irão votar — disse um jovem iraniano, em depoimento a um documentário produzido pela campanha do reformista. — Os jovens no Irã não dizem mais que não querem aquela pessoa como presidente, ou aquela outra naquela posição: nós dizemos que não queremos mais esse modelo.

Palavras que soam como um alerta para Khamenei. Um dos pilares do sistema fundado pelo aiatolá Ruhollah Khomeini após a Revolução Islâmica de1979 é a percepção de que a sociedade tem um papel único no Estado, e isso se dá também através das urnas. Para o líder supremo, um novo baixo comparecimento poderia ser lido como uma crise de legitimidade do regime, especialmente no exterior.

— Nós damos uma grande importância ao alto comparecimento [às urnas] porque seu efeito mais significativo é honrar a República Islâmica — disse Khamenei, em discurso na terça-feira. — A República Islâmica tem inimigos. Uma das coisas que pode derrotar esses inimigos é a eleição. Se a elevada participação popular for observada na eleição, será um motivo de honra.

Divisão da 'linha-dura'
Dos 80 nomes que apresentaram suas pré-candidaturas, seis foram liberados para concorrer, sendo que apenas um, Pezeshkian, é do campo reformista. Dentro do complexo sistema político iraniano, o presidente é a segunda figura mais importante, mas tem os poderes controlados por Khamenei, responsável por decisões de grande porte, e pelos demais Poderes, que podem questionar suas medidas, planos e formações do Gabinete ministerial.

Para analistas ligados ao regime e figuras da chamada linha-dura, o excesso de candidatos conservadores diluiu os votos, e pode beneficiar os reformistas nas urnas. Jalili e Ghalibaf, principais expoentes desse campo, têm propostas similares, incluindo sobre as regras “de moralidade” (embora tenham fugido do tema na campanha para não perder votos), são defensores do regime e têm bons laços com o clero e a Guarda Revolucionária.

Até o último instante, houve apelos para que um deles abandonasse a disputa, argumento reforçado por pesquisas que apontam vitória de ambos contra Pezeshkian em um segundo turno. Na quarta-feira, eles reiteraram que irão “até o fim”.

O próximo presidente encontrará um país com problemas de resolução complexa. A começar pela economia, que apesar de ostentar taxas de crescimento de 3,3% encontra limites para avançar ainda mais, em boa parte por causa do elevado controle da Guarda Revolucionária sobre as atividades econômicas, dos altos níveis de corrupção e das sanções internacionais.

Nos debates, os candidatos pareceram concordar que um choque é necessário para movimentar a economia, e que a diplomacia é importante para livrar o país das sanções, cada um a sua forma. Pezeshkian defende o retorno ao acordo sobre o programa nuclear iraniano, hoje virtualmente abandonado, e trouxe para sua campanha o ex-chanceler Javad Zarif, um dos arquitetos do plano. Jalili, por sua vez, aposta na aliança com China e Rússia, e Ghalibaf acredita que o engajamento com o Ocidente só deve ocorrer caso haja a promessa de “benefícios econômicos”.

A disputa ocorre em paralelo a um outro processo de transição local, que movimenta engrenagens há mais de uma década. Khamenei, que é quem dá as cartas no país, está com 85 anos e os relatos sobre sua saúde frágil não são raros. Pelas regras, cabe à Assembleia dos Especialistas, órgão eleito pelo voto popular, escolher o novo líder supremo, mas Khamenei tem tentado direcionar essa definição ainda em vida. Raisi chegou a ser cogitado, e sua morte abriu caminho para que o filho do aitolá, Mojtaba, surgisse como favorito. Mas analistas veem tal escolha como potencialmente arriscada.

— Se Khamenei morrer e se Mojtaba for declarado seu sucessor, novos protestos populares contra o regime não podem ser descartados — disse à AFP Ali Fathollah-Nejad, diretor do Centro para o Oriente Médio e a Ordem Global, em Berlim. — A maior questão é se, neste cenário de um vácuo de poder ou uma decisão contestada sobre a sucessão, veremos rachaduras no poder e no aparato de segurança, que poderiam abrir uma janela para eventos inesperados.