ARGENTINA

Êxitos de Milei ocorrem em paralelo ao aumento da taxa de pobreza na Argentina

Milei conseguiu sua primeira conquista no Congresso com a aprovação da Lei de Bases em junho, mas agora começam a surgir as expectativas sobre o que ele fará com esse triunfo

O presidente da Argentina, Javier Milei - Stringer/AFP

Na última semana de junho, um vídeo mostrando como 8 toneladas de tangerinas eram jogadas no lixo por produtores rurais da província argentina de Entre Rios viralizou entre usuários das redes sociais de um país no qual, segundo estimativas de centros de estudos privados, a taxa de pobreza já superou 50% e deve atingir em 2024 o nível mais alto dos últimos 20 anos.

O drama do empobrecimento das classes média e média baixa é o saldo mais dramático do primeiro semestre de governo do presidente de extrema-direita Javier Milei, que, no mesmo período, obteve uma vitória importante no Congresso, equilibrou as contas públicas e evitou que o país mergulhasse numa nova hiperinflação.

 

Um membro de uma cozinha comunitária serve sopa depois de uma missa presidida pelo bispo Oscar Ojea, no Santuário da Virgem de Caacupe, em Ciudad Evita, La Matanza, periferia de Buenos Aires. — Foto: UAN MABROMATA/AFP

A fome e a pobreza já eram uma realidade na Argentina quando Milei assumiu o poder, em 10 de dezembro de 2023. Mas o ajuste brutal implementado pelo presidente e a decisão de esfriar a economia para conter a inflação aprofundaram a crise social. Esse aprofundamento ainda não teve impacto negativo nos índices de popularidade do chefe de Estado, que, segundo recentes pesquisas, tem entre 45% e 50% de aprovação.

Dentro da Argentina, Milei surfa na onda da crise de credibilidade que sofrem seus adversários políticos, sobretudo o kirchnerismo, ainda em estado catatônico pela derrota eleitoral de 2023. Fora do país, o presidente capitaliza alianças com líderes de ultradireita como o candidato republicano Donald Trump e a premier italiana, Giorgia Meloni.

— A pobreza aumentou, sim, é uma realidade. Mas na política, hoje, não existe alternativa a Milei, que controla 100% da agenda nacional — afirma o analista Carlos Fara, diretor da Fara e Associados.

Sem produtos essenciais
Produtores de Entre Rios estão jogando toneladas de frutas no lixo, e o consumo nacional, segundo dados da Câmara Argentina de Comércio e Serviços (CAC), caiu 3,4% de janeiro a abril, frente ao mesmo período de 2023.

Os argentinos estão reduzindo de forma expressiva o consumo de produtos que sempre foram essenciais em sua alimentação, como leite, carne e erva mate. No caso do leite, por exemplo, cujo preço subiu 123% de dezembro a março, segundo dados oficiais, o volume de vendas recuou 18,7% nos primeiros três meses do ano. O monitoramento é feito pelo Observatório da Cadeia de Laticínios da Argentina.

Os argentinos estão mais pobres e subalimentados, mas Milei, em grande medida por ter conseguido conter a perigosa escalada da inflação e pela ausência de rivais que possam desafiar sua popularidade, vem ganhando tempo.

Depois de um primeiro semestre que, para muitos, superou as expectativas em relação a um outsider que chegou ao governo sem um programa claro sobre como tirar a Argentina do buraco, surgem agora as dúvidas sobre como fará o presidente para iniciar um processo de recuperação econômica que traga alívio aos mais vulneráveis.

— O aumento da pobreza se deve, sobretudo, à deterioração do poder aquisitivo e da renda. Basicamente, a inflação avançou mais do que os salários — explica Leopoldo Tornarolli, economista do Centro de Estudos Distributivos, Trabalhistas e Sociais (Cedlas) e da Universidade Nacional de La Plata.

Segundo suas estimativas, calculadas com base em dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), entre outubro de 2023 e março de 2024 a taxa de pobreza atingiu 50,1%. O Indec divulga a taxa de pobreza a cada seis meses e, em março, informou que no segundo semestre de 2023, o percentual chegou a 41,7%. Segundo Tornarolli, essa medição está longe da realidade, já que não inclui os primeiros meses de 2024, quando ocorreu a maior deterioração social devido às primeiras medidas adotadas por Milei.

— Minha impressão é de que a taxa de pobreza do Indec do primeiro semestre de 2024 será ainda mais alta, podendo chegar a 55%. Será a mais elevada desde 2004 — aponta o economista.

Em reportagem do jornal El Cronista, o economista Daniel Schteingart, da Fundar, estimou que a taxa de pobreza subiu de 38,7% no primeiro semestre de 2023 a 55,7% no mesmo período deste ano.

— A perda de renda afetou todos os setores sociais e oscilou entre 20% e 30% — acrescenta o economista do Cedlas.

Incerteza e preocupação
Com uma bancada minoritária no Congresso, Milei conseguiu aprovar a Lei de Bases no final de junho, e essa vitória, que permitirá a implementação de reformas em matéria tributária, privatizações e poderes excepcionais para o chefe de Estado pelo período de um ano, foi comemorada quase como um plebiscito sobre a viabilidade do governo.

De fato, conseguir sinal verde de um Congresso no qual depende de alianças e negociações foi um enorme desafio para o presidente, superado após algumas derrotas.

O risco de uma crise de governabilidade foi temporariamente afastado, mas agora surgem as expectativas sobre o que fará Milei com esse triunfo legislativo, num país que deve fechar o ano com retração do PIB em torno de 3,5% e no qual a fome e a pobreza se espalham.

Na Casa Rosada, comentam jornalistas que cobrem o governo, predomina um clima de preocupação pelas cobranças que surgirão a partir da aprovação da lei, sobretudo por parte da sociedade.

O presidente não poderá culpar os antecessores pela crise por muito mais tempo, e membros do Gabinete, segundo os mesmos jornalistas, admitem em conversas informais o temor de um eventual desgaste da imagem de Milei se não forem apresentados resultados a curto e médio prazos.

— Existe uma incerteza na sociedade e nos mercados em relação aos próximos passos de Milei. Não está claro qual é seu plano a partir de agora, por exemplo, em matéria cambial — afirma o analista Patricio Talavera, da Universidade Nacional de Buenos Aires (UBA).

O governo está sendo pressionado para acelerar a desvalorização do peso — e assim aumentar a competitividade dos produtos argentinos no exterior — e liberar o chamado cepo, medida que limita as operações no mercado de câmbio.

— O recado dos que apoiaram a Lei de Bases é claro: querem resultados rápido. O discurso da herança recebida do governo kirchnerista vai perder força — prevê Talavera.

Segundo o analista, Milei tem mais alguns meses de tolerância social e política e, depois disso, “será herdeiro de si mesmo, e aí saberemos qual é sua verdadeira força”.