Sucesso no rádio, Jorge Vercillo critica streaming: "Trilhões de plays para ganhar algum dinheiro"
Artista cruza o Brasil com turnê que celebra 30 anos de carreira e grava DVD: 'não sou um cantor de uma música só'
Os cabelos (à base de alguma tintura, ele admite), o brinquinho de argola e o rosto (“isso daí, já é a genética”, credita) são quase os mesmos daquele Jorge Vercillo que, lá se vão mais de 20 anos, tomou as rádios e TVs de assalto com canções como “Final feliz”, “Que nem maré”, “Homem-Aranha” e “Monalisa”, pérolas da MPB pop. Mas este Jorge aí, que chegou aos 55 anos de idade, se recusa a ficar preso nas glórias passadas.
É um artista que segue buscando novas parcerias e lançando, com sucesso, músicas inéditas. A mais recente, “Tu sabes”, com a cantora uruguaia Meri Deal e o DJ e produtor Rafinha RSQ, é a nona mais tocada de MPB nas rádios do país, segundo o último levantamento da Crowley Broadcast Analysis.
Além disso, ele enche casas de show país afora com a turnê JV30, que celebra três décadas de uma carreira que o levou — entre papos sobre teosofia, ufologia e projeção astral — ao posto de patrimônio das FMs do segmento adulto contemporâneo.
— Esse final de semana é o único do ano que eu vou ficar em casa, cara, graças a Deus! — comemorou Vercillo, no último dia 27, uma quinta-feira, ao receber o GLOBO em sua ampla residência com jardim, piscina e estúdio, na Barra da Tijuca. — Chegou o momento em que o Brasil resolveu fazer jus à minha obra. Parece arrogância, mas não sou um cantor de uma música só e isso me alegra muito. Esse volume de hits é o que faz o mercado me dar mais valor hoje.
Empresária doméstica
O repertório acumulado, de fato, ajuda bastante — e depois que Jorge saiu das grandes gravadoras e criou seu próprio selo, há mais uma de década, ainda emplacou nas rádios músicas como “Endereço”, “Só quem ama”, “Talismã sem par” e “Linda flor”. Mas a virada de chave para o aumento de cachê quem deu — o artista diz com orgulho — foi a sua mulher, Martha Suarez, com quem vive há 10 anos.
Biomédica da Fiocruz, ela estava na pandemia, grávida de Luísa (filha do casal, hoje com 3 anos), escrevendo seu projeto de pós-doutorado quando começou “despretensiosamente” a analisar planilhas dos shows do marido e percebeu erros. Jorge acabou saindo do escritório com o qual trabalhava e Martha acabou se envolvendo mais em sua carreira.
— A gente começou dizer alguns “nãos”, a falar que determinadas condições e lugares não eram para ele — conta Martha, reconhecendo que isso, a princípio, diminuiu o número de shows. — Mas sem problemas. A gente não faz questão de ter aquela agenda superlotada, a gente quer qualidade.
O trabalho com Martha, com o empresário César Figueiredo (que chegou em dezembro) e com o baixista de sua banda, André Neiva (que cuida de rádio e de impulsionamentos em redes sociais) foi o esteio de uma turnê que já passou com sucesso por cidades como Salvador (onde ele gravou DVD do show, com participação de Ivete Sangalo), irá a Portugal em outubro e regressará em grande estilo ao Rio, cidade natal do artista, dia 9 de novembro, no palco Qualistage.
— Sou um artista adulto, como a Marisa Monte, o Caetano e o Djavan. A gente vende ingresso sempre, o ano todo, mas não é pra lotar um estádio, como a Ivete ou a Ludmilla — explica Jorge, citando as duas artistas que cancelaram grandes turnês este ano. — O mercado cobra delas algo muito grande.
Mesmo com bons números nas plataformas, ele diz achar que o Jorge Vercillo do streaming está aquém do superstar das rádios.
— Na pandemia, sem poder me apresentar nos palcos, só sobrevivi graças ao que recebia pela execução em rádio — revela ele, lembrando em seguida de um encontro recente com o presidente do braço brasileiro de uma grande gravadora multinacional. — Perguntei: “E aí, cara, como é que está o mercado?” E ele: “Nunca ganhamos tanto dinheiro!” Aí eu fiquei olhando e falei: “Pois é, só falta a gente ganhar, porque o artista precisa gerar trilhões de plays no streaming para ganhar algum dinheiro.” Ele parecia não ver como isso faz a qualidade da música diminuir.
Projeções políticas e astrais
Aos 30 anos de carreira, Jorge Vercillo se diz feliz de saber que seus hits viraram portas de entrada para temas tão variados como Helena Blavatsky (escritora russa, responsável pela sistematização da Teosofia, que ele homenageou no álbum de 2007, “Como diria Blavatsky”), projeção astral, ufologia, geopolítica e ambientalismo.
— Desde o início a música veio expandindo a minha consciência. Primeiro pegou um garoto da Zona Sul (do Leme), preconceituoso, que queria ser jogador de futebol e jogou na noite. E na noite eu virei Exu, aquele cara que começa a não ter medo da madrugada, que ficava na rua esperando para tocar, escrevendo letras de músicas — recorda-se. — Hoje tem gente que entra no meu camarim falando: “eu já me curei com a sua música”. E eu: “olha, não fui eu, foi a tua ligação com a música que fez isso!”
Além da teosofia, Jorge Vercillo gosta de falar, com a maior naturalidade, sobre projeções astrais lúcidas (“já me vi várias vezes fora do corpo, mas babo é com os amigos que já atravessaram paredes, saíram da estratosfera e visitaram outros planetas”) e uma suposta origem alienígena para a Humanidade (“os seres todos estão completamente adaptados ao planeta, o único ser que não está é o Homo sapiens”). Drogas, ele diz não usar.
— Na verdade, fui convidado por uns amigos para usar ayahuasca, fiquei abobalhado. Tenho o maior respeito pelo (Centro Espírita) União do Vegetal e pelas outras comunidades, é muito sério o trabalho deles, mas comigo não funcionou, acho até que diminuiu a minha consciência — confessa. — Já experimentei maconha, acho o cheiro muito agradável, mas prefiro ficar muito mais na maresia do que fumar, até porque eu não sei tragar. E não bebo.
Se os assuntos de outros mundos o inflamam, a política é um tema que Jorge Vercillo trata com interesse — e cautela.
— Tinha anseios de que a sociedade brasileira discutisse e refletisse sobre a última eleição presidencial. Então, formei um grupo no WhatsApp chamado Todos Nós Somos Um. Juntei atores, músicos, compositores, produtores... E, cara, foi tanta briga entre coisa de Lula e Bolsonaro que o grupo se dividiu e virou Todos Nós Somos Dois — conta, rindo.
À vontade para criticar
Um mal-entendido recente, envolvendo Lula e Bolsonaro, por sinal, fez com que Jorge se retirasse de uma das peladas que disputava com o Politheama, time do ídolo Chico Buarque. Águas passadas, ele esclarece.
— O que houve ali é que o Chico levantou uma questão, eu contestei e, no dia seguinte ele me mandou e-mail, dizendo que estava enganado, que não tinha nada a ver brigar e que eu era muito bem recebido lá — diz. — Eu me identifico como um cara de esquerda, mas justamente por ser de esquerda, me sinto à vontade para questionar algumas coisas nela, assim como questiono muitas coisas na direita também.
E a extrema-direita?
— Essa coisa do fascismo não tem nada a ver comigo. Não entra na minha cabeça essa ideia de que nossa família está sendo ameaçada pelo casal homoafetivo do andar de cima ou por um beijo gay na TV. Pelo amor de Deus, cara, que mente é essa? — revolta-se.
Ainda nos anos 1990, Vercillo assinou duas músicas com temática homossexual: “Avesso” e — sim, as teorias estão certas — “Final feliz” (dos versos: “pode me abraçar sem medo/ pode encostar sua mão na minha).
— A Warner me pediu para fazer para a (cantora) Renata Arruda uma música na linha de “Avesso”, só que numa perspectiva mais feminina. Saiu “Final feliz”, que ela acabou não gravando porque já tinha finalizado o disco.