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Ficção cristã: livros que aliam narrativas envolventes e valores religiosos ganham espaço no mercado

Livros de ficção podem ter pegada histórica, juvenil, fantástica ou romântica, mas sem cenas de sexo e sem doutrinação

Ficçãoo cristã - Pixabay

À primeira vista, a ficçao “Sons de ferrugem e ecos de borboleta” parece só uma história de amor. Lançado pela Thomas Nelson (selo da HarperCollins), o livro de Noemi Nicoletti acompanha Liesel, adolescente disposta a tudo para conhecer Leo Adrian, ídolo pop australiano em turnê no Brasil.

Nada, porém, sai como ela esperava. Liesel acaba se aproximando de Jay Buttlerfly, rapper inglês que abre os shows de Adrian. De folga, Jay passeia com Liesel por Santos, cidade onde ela vive e... Já deu para imaginar o que acontece, não?

O rapper branquelo (e virgem) diz que pode ajudá-la a “encontrar o amor verdadeiro”. Quando vê que Lisele se anima toda, ele esclarece: referia-se ao amor divino. “Estou me jogando nos braços dele, oferecendo toda minha existência, e ele vem e me fala de... Jesus Cristo?”, ela reclama.

“Sons de ferrugem e ecos de borboleta” é um exemplo de ficção cristã, tendência literária que explodiu no último ano e já pressiona editoras que antes privilegiavam a teologia a investir mais em entretenimento.

Prova disso é que a terceira edição da Feira de Ficção Cristã e Cultura (Feficc), que começou quarta-feira (17) e termina neste sábado (20), levou mais de 20 editoras à Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. No ano passado, a Feficc ainda era realizada em Belo Horizonte e só duas editoras participaram. Em 2022, só havia autores independentes.

Segundo a Nielsen BookScan, a participação de títulos cristãos no mercado editorial brasileiro saltou de 1,6% em 2019 para 3,3% em 2023. Somente a Thomas Nelson vai publicar 11 ficções cristãs em 2024. A Mundo Cristão fechará o ano com dez títulos e estima vender 190 mil livros até dezembro. O editor Daniel Faria diz que “chega um original novo todo dia” e elogia o “profissionalismo das autoras” (sim, as mulheres são maioria na cena), que divulgam umas às outras e escrevem a partir de “dilemas brasileiros”.

Amor ao próximo, perdão e esperança
A ficção cristã não é evangelística, ou seja, não tem a missão de converter ninguém (embora esse seja o clímax de alguns livros). Publicados sobretudo por autores e editoras evangélicos (mas não só: a Record publica a ficcionista cristã Francine Rivers), estes livros se propõem a entreter o leitor com uma narrativa que transmite valores cristãos (amor ao próximo, perdão, esperança etc.).

Ao Globo, Noemi Nicoletti diz que só queria escrever uma história romântica, mas não conseguiu “deixar Deus de fora”.

É difícil traçar as origens da ficção cristã. Jesus já criava parábolas. O romance “O peregrino”, de John Bunyan, que é uma alegoria da vida cristã, foi publicado em 1678. Clássicos da literatura em língua inglesa que têm certa vocação moralizante, como “Grandes esperanças”, de Charles Dickens, e “Mulherzinhas”, de Louisa May Alcott, são apontados como pioneiros da ficção cristã.

Fantasias como “O senhor dos anéis”, de J.R.R. Tolkien, e “As crônicas de Nárnia”, de C.S. Lewis, entram na lista, devido à fé de seus autores e à presença de alegorias (o leão Aslam, de “Nárnia”, representa Cristo).

Diretor editorial da HarperCollins, Samuel Coto explica que a ficção cristã se popularizou nos EUA nos anos 2000 na esteira da bem-sucedida série “Deixados para trás”, que virou filme e se apresentava quase como uma tentativa de prever o fim do mundo de acordo com teologias fundamentalistas.

No entanto, a ficção cristã que se desenvolveu a partir daí abandonou a pretensão de doutrinar o público e apostou no entretenimento. Coto também atribui o sucesso ao desejo do leitor protestante de se ver na literatura.

Essa representatividade vai desde cenas passadas em igrejas (que é onde os pombinhos às vezes se conhecem) a diálogos cheios de “crentês”. “Não queria encontrar aquele fazedor de mistérios nem pintado de ouro puro de Ofir”, diz a narradora de “Quinze minutos para o pôr do sol”, de Isabela Freixo, que a Mundo Cristão lança em setembro. Na Bíblia, “ouro de Ofir” é símbolo do que é raro, como a sabedoria.

Em “Meu sol de primavera”, de Queren Ane, a mãe da protagonista Chér a chama de “princesa do Senhor” e “filha do Rei Altíssimo” para consolá-la de uma desilusão amorosa — e ensiná-la a rezar pedindo a Deus que guarde seu coração de “paixões levianas”.

Chér é uma adolescente comum: ouve Taylor Swift, é viciada em celular e pena para domar os cachos. E, sim, é evangélica.

Sem doutrinação
Queren Ane é uma das autoras de “Corajosas” (Mundo Cristão), livro que traz releituras de contos de fadas, já vendeu mais de 60 mil cópias e ganhou continuação.

— Meu propósito é escrever ficção que seja criativa, emocionante e traga temas universais de uma perspectiva cristã, mas sem enfiar doutrina goela abaixo do leitor — afirma.

A ficção cristã abrange diversos gêneros: pode ser histórica, apocalíptica, fantástica, juvenil, romântica... Ou inspirada em dorama (séries asiáticas), como “Quinze minutos para o pôr do sol”. Só não pode ter cena de sexo.

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Para Sara Gusella, estes livros aproximam o público evangélico da ficção — os mais conservadores resistem à fantasia, especialmente se houver feitiçaria ou outros deuses na história. É desse gênero que Sara gosta. Ela é autora de “A escolha do verão” (Thomas Nelson), fantasia ambientada em uma vila que só conhecia o calor, mas é dominada pelo inverno. Até que Beor decide ir atrás do verão e se sacrificar por seus seus amigos (como fez Jesus).

— A ficção cristã educa o público, mostra que a fantasia pode contar histórias com propósitos e não é do diabo. G.K. Chesterton (autor inglês) disse que as crianças não devem ler histórias de dragão para pensar que dragões existem, mas para saber que eles podem ser derrotados. Dragões não existem, mas o mal, sim. Por isso, nossas histórias pregam que a bondade e o perdão valem mais que a vingança — diz a criadora da Feira de Ficção Cristã e Cultura.

O boom da ficção cristã reflete o aumento da produção cultural direcionada aos evangélicos, que já são um terço da população. No audiovisual, surgem cada vez mais obras que, sem nenhum compromisso proselitista, acenam ao segmento, de filmes como “No ritmo da fé” (disponível na Netflix) à novela “Vai na fé”, exibida no ano passado pela TV Globo.

O antropólogo Juliano Spyer, autor de “Povo de Deus” (Geração Editorial), cita a série americana “The Chosen” (Globoplay e Netflix), que retrata a vida de Jesus, como o produção que melhor soube apresentar um conteúdo atraente aos evangélicos sem doutrinação e sem comprometer a qualidade artística.

Resta saber se essas produções, na literatura e no audiovisual, serão capazes de furar a bolha protestante, como fez a música gospel.

— A música gospel não pede credencial, não precisa ser evangélico para ouvir. O brasileiro popular está interessado em Deus, e o que interessa para ele é se a música faz bem — aponta Spyer.

A escritora Noemi Nicoletti acredita que a ficção cristã pode criar uma ponte entre quem crê e quem não crê. Ela admite que às vezes é “tentador” escrever um “sermão disfarçado”, no qual os cristãos são heróis e os descrentes são vilões, “porque é com isso que o público evangélico está acostumado”.

— Nessas horas, penso que a narrativa tem valor em si, é mais que um meio de transmitir a doutrina. Mas não dá para deixar Deus de fora. Seria como escrever sobre uma história em que a gravidade não existe — diz ela.