Velocidade de apoios a Kamala apaga imagem de caos democrata e causa preocupação na campanha
Kamala recebe sinalizações entusiasmadas de nomes apontados como possíveis adversários em uma ainda viável matematicamente disputa interna no campo governista
A velocidade impressionou. E foi lida — inclusive, e especialmente, pelos adversários — como demonstração de força. Menos de 24 horas após Joe Biden anunciar o fim de sua tentativa de reeleição e apontá-la como sua escolha para sucessora, Kamala Harris já assegurara mais da metade do apoio dos delegados que confirmarão em agosto, na Convenção Nacional Democrata, o principal adversário de Donald Trump na batalha pela Casa Branca.
Não menos importante, a vice-presidente recebeu nesta segunda-feira sinalizações entusiasmadas de nomes apontados como possíveis adversários seus em uma ainda viável matematicamente, mas cada vez mais improvável, disputa interna no campo governista.
Em um único dia, conseguiu colocar em dúvida a imagem cristalizada na Convenção Republicana, semana passada, da união republicana, após o atentado contra o ex-presidente, em oposição ao caos democrata. Não é pouca coisa.
Presidenciáveis democratas como os governadores da Califórnia, Gavin Newsom, do Michigan, Gretchen Whitmer, e do Illinois, J.B. Pritzker, milionário dono da rede de hotéis Hyatt e com muito dinheiro para doar, disseram-se prontos para arregaçar as mangas por Kamala “desde o primeiro minuto”.
Mesmo a ex-presidente da Câmara Nancy Pelosi, uma das arquitetas da desistência de Biden e defensora de novas prévias no partido, com o objetivo de evitar, em suas palavras, “a impressão de uma coroação”, rendeu-se à rainha posta. Só faltavam, em Washington, os líderes do partido no Senado e na Câmara e os Obama.
Do estado de Nova York, após o anúncio conjunto de apoio com o marido, o ex-presidente Bill, a ex-secretária de Estado Hillary Clinton publicou em suas redes sociais uma foto propositadamente amarelada dela com Kamala durante a campanha de 2016.
Na legenda, a ex-primeira-dama sublinhou aquele que já é um dos mantras do projeto Kamala: “Se engaje comigo na campanha dessa brilhante procuradora da Justiça contra o condenado Donald Trump na defesa de nossas liberdades.”
Estratégia de campanha
Três imediatos objetivos da nova adversária de Trump estão explicitados no post de Hillary. O “se engaje”, traduzido na visível animação da militância com a troca de candidatos nas redes e nas ruas dos estados decisivos em novembro, e também nos US$ 81 milhões arrecadados em doações em apenas um dia, até o meio da tarde (quase o dobro dos US$ 53 milhões de Trump após sua condenação em Nova York).
A “oposição da procuradora ao criminoso” desafia a direita ao se apropriar da mensagem de defesa da lei e da ordem, em oposição à narrativa republicana de que, quando czar da Imigração de Biden, Kamala foi frouxa com a “invasão de ilegais”.
Antes, ao comandar a Justiça da Califórnia, ela foi percebida como um quadro de centro e não a radical de esquerda pintada pelo trumpismo.
E “defesa de nossas liberdades” explicita a aposta decisiva no peso de uma mulher negra em comícios e debates defendendo a possibilidade de aborto como direito básico de saúde contra o homem branco de 78 anos responsável pelas nomeações da Suprema Corte decisivas para a revogação federal da interrupção da gravidez.
Se vai dar certo, os próximos pouco mais de cem dias dirão. Mas o que as primeiras horas da Kamala candidata já revelaram foi uma urgência inexistente na campanha de Biden.
O presidente de 81 anos, por exemplo, demorou mais de uma semana para reagir internamente à sua fritura pós-debate. A pressa de Kamala, no entanto, não impediu cuidado extremo com seu antecessor.
Em seu primeiro discurso como candidata, a vice exaltou, como se esperava, o legado político de Biden (“Joe fez mais nos últimos três anos do que a maioria dos líderes americanos em dois mandatos completos”).
Mas também fez questão de dar um depoimento mais pessoal, sobre o homem, ao celebrar “sua honestidade, sua integridade, o compromisso com a sua fé e seu enorme coração”. Qualidades importantes para o eleitor da América Profunda.
'Kamala quem?'
Há, também, claro, problemas. A apagada passagem pela vice-presidência se reflete na reação de mais de 1/5 dos entrevistados em pesquisas de intenção de votos: “Kamala quem?”.
A campanha busca ler nos números maior possibilidade de animar cidadãos a sair de casa em novembro para abraçar “algo novo”, mesmo quando, claramente, não o devia ser. Mira especialmente aqueles que podem decidir a disputa: mulheres dos subúrbios, negros e hispânicos.
A campanha de Trump, claro, não passou o dia de olhos fechados. Desde esta segunda-feira, o ex-presidente repete em todas as suas publicações na rede social que criou para si que “Kamala é Biden”.
Na tevê dos estados mais disputados, suas propagandas começarão ainda esta semana a martelar que a vice enganou os cidadãos ao não revelar a real condição física e cognitiva de “seu chefe”. Desonesta.
Mas há, também, a constatação de que algo importante se perdeu: o monopólio do ataque. Que agora do outro lado haverá não só reação e desmentidos, mas também a tentativa de desconstruir a própria ideia de mudança.
Mesmo sendo a candidata da situação, Kamala, 59 anos, ao contrário de Trump, 78, jamais comandou a Casa Branca. E chega com um imenso repertório de ineditismos para a enfrentar a nostalgia de anos dourados que podem até ter sido melhores do que os de agora, a depender da régua usada para a comparação. Mas que, por definição, representam o velho.