Como é o livro de fantasia de Keanu Reeves co-escrito com premiado escritor marxista China
Lançado agora nos EUA, romance sobre homem solitário que nunca morre tem boa dose de absurdo e existencialismo
Keanu Reeves não sabe exatamente de onde surgiu a ideia — em algum momento entre o lançamento do filme “John Wick 2: um novo dia para matar” e antes de começarem as filmagens de “The Matrix Resurrections”, ambos estrelados por ele —, mas um dia imaginou um homem que não poderia morrer.
— Tornou-se uma série de “e se?” — disse ele. — E se tivesse 80 mil anos? De onde veio esse personagem? E se viesse de uma tribo que estava sendo atacada por outras tribos e quisesse pedir uma arma aos deuses, e se um deus respondesse, e se isso desse à luz uma criança meio humana, meio deusa?
A partir daí, ampliou:
— Partiu desta premissa simples, e ganhou complexidade, e continuou a crescer.
Por um tempo, o personagem só existiu na cabeça de Reeves. Então ele se perguntou: e se esse guerreiro imortal se tornasse a base de uma história em quadrinhos? Um filme de ação? Uma série animada?
— Então, havia outra hipótese — disse. — E se virasse um romance?
Desde então, o antigo guerreiro de Reeves se tornou a âncora de uma crescente franquia multimídia. A história em quadrinhos que ele imaginou e coescreveu, “BRZRKR”, cresceu em uma série de 12 edições que vendeu mais de 2 milhões de cópias. Um filme live-action, estrelado e produzido por Reeves, e um spinoff animado estão em desenvolvimento na Netflix.
E agora, Reeves está lançando seu romance de estreia, “The book of elsewhere”, que ele coescreveu com o autor britânico de ficção científica China Miéville.
Situado no mundo dos quadrinhos “BRZRKR”, “The book of elsewhere” é um mashup de ficção científica, fantasia, ficção histórica e mitologia, com uma forte dose de existencialismo.
Chamá-lo de livro estranho não dá a ideia total de sua estranheza multiforme e desafiadora de gênero. Ele é centrado no guerreiro de 80 mil anos de Reeves — chamado Unute ou, às vezes, B —, que é assustadoramente forte, capaz de arrancar os braços das pessoas e dar um soco no peito, mas está cansado de seu estado imortal.
É um thriller cheio de adrenalina, mas também é um romance experimental e temperamental sobre a mortalidade, a natureza escorregadia do tempo e o que significa ser humano.
À primeira vista, Reeves e Miéville podem parecer uma dupla estranha. Reeves é uma estrela de cinema que estrelou franquias de ação de bilhões de dólares como “Matrix” e “John Wick”, bem como clássicos cult como a comédia chapada de viagem no tempo “Bill e Ted: uma aventura fantástica” e o thriller policial de surfista “Caçadores de emoção”.
Miéville é marxista e tem doutorado em relações internacionais pela London School of Economics. Ele é conhecido nos círculos literários por seus romances de ficção científica e fantasia inebriantes e politicamente carregados, entre eles “Kraken”, que apresenta um culto de adoração de lulas, e “Railsea”, ambientado em um mundo distópico coberto por linhas ferroviárias e povoado por ratos-toupeira pelados gigantes, o que é ao mesmo tempo uma homenagem a “Moby Dick” e uma crítica ao capitalismo moderno.
Mas, de outro ângulo, a parceria Reeves/Miéville faz sentido estético, cultural e até filosófico. Ambos colocam questões alucinantes sobre os mistérios da existência em seus trabalhos e muitas vezes contrabandeiam essas ideias por meio de enredos cheios de ação.
Reeves cresceu devorando ficção científica de William Gibson e Philip K. Dick, e mais tarde passou a amar os contos de Miéville, que ele chamava de “uma maravilha”. Miéville, por sua vez, diz adorar o modo como, em filmes como “Matrix” e “Johnny Mnemonic”, Reeves foi capaz de “combinar propulsão com espetáculo surpreendente, com provocação e investigação filosófica herética”.
Numa entrevista conjunta em vídeo, Reeves, da sua casa em Los Angeles, e Miéville, em Berlim, usaram a palavra “absurdo” para descrever como era surreal trabalhar um com o outro. Eles falaram sobre seu primeiro encontro, em Berlim, durante o verão de 2021, da mesma maneira vertiginosa que um novo casal conta sobre como se conheceu.
Na reunião, Reeves disse a Miéville que, exceto por alguns pontos-chaves da trama e por traços de personagem que foram estabelecidos nos quadrinhos, Miéville poderia fazer o que quisesse com o material original.
A abertura de Reeves convenceu Miéville de que ele seria capaz de escrever algo narrativamente interessante e entregar um livro que não parecesse um produto derivado de uma história em quadrinhos.
— Era importante abordarmos isso de uma forma que se produzisse algo novo, algo muito literário no sentido de usar o romance e de usar a forma do romance, que mesmo assim fosse descarada e alegremente um romance “BRZRKR”, que homenageasse o material de origem — disse Miéville.
Quanto ao motivo pelo qual quis escrever um romance e como os seus projetos literários se cruzam com a sua carreira cinematográfica, Reeves teve uma resposta que reconheceu, desculpando-se, ser “tão óbvia e redutora”.
— É outra versão de contar histórias, que adoro — disse.
Muitas peças
Além das peculiaridades do romance em si, há a estranheza do fato de Keanu Reeves ter escrito um romance. Outras estrelas de cinema fizeram isso — como Tom Hanks, Carrie Fisher, Sean Penn, Ethan Hawke, Jim Carrey — com resultados mistos.
O fato de Reeves ter escolhido a dedo um romancista premiado como seu braço direito, em vez de recrutar discretamente um ghost writer, foi um sinal de sua total seriedade. Eles mapearam o enredo juntos, mas quando se tratou da escrita propriamente dita, Miéville assumiu as rédeas, criando um esboço e entregando um rascunho, além de fazer revisões com base nas sugestões de Reeves.
A princípio, “The book of elsewhere” parece um thriller de espionagem propulsivo, com cenas de carnificina que trazem à mente o papel de Reeves como um assassino que adora cachorrinhos em “John Wick”. Começa com uma cena de violência grotesca, quando uma unidade militar secreta é emboscada por um homem-bomba que tem como alvo B, o guerreiro, que concordou em deixar os militares dos EUA usá-lo como arma em troca de sua ajuda para resolver o mistério de sua existência.
Mas rapidamente o romance entra em um território filosófico mais denso.
De outro mundo
“The book of elsewhere” é pontuado por oníricos interlúdios, em segunda pessoa, de um solitário B na Terra, enquanto ele observa a ascensão e queda de civilizações, tecnologias, espécies, religiões, línguas e ideologias.
Há uma longa participação especial de Sigmund Freud, que tenta tratar a melancolia incurável do guerreiro. B reflete sobre o encontro com Karl Marx (“sempre muito mais engraçado do que a maioria das pessoas pensa que ele é”) e o dramaturgo Samuel Beckett, que, na louca história alternativa do romance, certa vez escalou B para sua peça absurda “A última gravação de Krapp”.
Há um elemento central da trama que envolve um porco-veado mágico e imortal, que caça B há 78 mil anos e se torna seu inimigo e a coisa mais próxima que ele tem da família.
Reeves tem outras ideias para novos trabalhos baseados no personagem, incluindo, possivelmente, um poema épico.
— O show business analisa o que mais podemos fazer, mas eu abordo o assunto do lado do artista, como o que mais podemos fazer — disse Reeves. — Desde o início eu esperava que outros criadores e artistas pudessem brincar, como disse o China, com os brinquedos.
Ele ainda não tem certeza de como a versão do personagem que Miéville desenvolveu no romance influenciará os quadrinhos e outros projetos daqui para frente. Mas ele tem quase certeza de que isso o surpreenderá.
— Será revelado para mim — disse Reeves. — Há muito em que pensar, o que pode ser e como afetará o cânone, enquanto volto e brinco com meus próprios brinquedos.