MÚSICA

A bordo de "Janga", Ylana nos conduz em uma jornada existencial

Em seu terceiro álbum, a cantora e compositora pernambucana recorre às memórias de infância que viveu no bairro do município de Paulista

Ylana - Flora Negri/Divulgação

Do mais absoluto caos, é possível brotar inspiração e revoluções existenciais. Que o diga a cantora e compositora Ylana, que, diante do período desafiador que foram os anos de pandemia de covid-19, deu início, intuitivamente, a uma jornada rumo às suas memórias de criança, ao imaginário que lhe formou enquanto ser.

Dessa reconexão com sua natureza mais essencial, foi gestado seu terceiro álbum, “Janga”, lançado neste mês de julho nas plataformas digitais.

De imediato, Janga remete ao bairro do município de Paulista, onde Ylana viveu até os 14 anos de idade – para o qual retornou após 20 anos e onde reside atualmente.

Mas, muito além de um território geográfico, o Janga foi o cenário lúdico, de encantamento, de vida em comunidade, de litoral banhando a imaginação pueril da Ylana criança, a quem recorreu para conceber o novo trabalho.

Embarcação
“Janga” tem produção do mais fiel parceiro de Ylana, seu irmão Yuri Queiroga – inclusive, parceiro de infância, com quem ela compartilhou muitas das vivências dessa época e que resultaram no álbum.

Ylana canta reminiscências desse imaginário, reafirmado com seu retorno ao bairro, há cerca de dois anos, por uma “conspiração do universo”. “Janga, de uma forma geral, é um processo profundo de retomada da minha essência através dessa reconexão com os saberes da minha criança”, declara Ylana.

“Pra mim, criança sempre foi uma coisa muito sagrada, porque é o que tá mais perto da criação, tá mais perto do portal de existência de todas as coisas, e mais perto da fonte também, perto desse lugar do nascer”, conta Ylana sobre o movimento interno que lhe impulsionou a conceber “Janga”. “Junto com aprender o que era o Janga, eu fui aprendendo quem eu era”, comenta.

O álbum tem 10 canções, sendo nove assinadas por Ylana. Algumas, em parceria: “Grão de Mundo Inteiro” (com Manuca Bandini); “Brinquedo de Mão” (com Yuri Queiroga); “Debaixo” (com o marido e baixista Chico Tchê), “Germinar” (com Flaira Ferro) e “Grito Nobre” (com Yuri e Héloa).

“Janga” vem depois dos álbuns “Ylana” (2013) e “Vento” (2017), tem participação especial de Isaar e conta com a violeira Laís de Assis e com o maestro Spok entre os músicos convidados.

Voinha
Personagem fundamental das lembranças de infância, a cantora Mêves Gama (1939-1999), avó de Ylana, morava no mesmo conjunto residencial que a neta, no Janga. “A minha maior referência de acolhimento, de força, de tempo, de terra, de fogo. De tudo… de natureza humana”, conta Ylana.

Foi nessa convivência com a avó, entre “o mar e a mata” – praia do Janga e a Mata Atlântica, vizinha ao residencial – que Ylana cresceu e apre(e)ndeu o mundo sob a ótica da criança, entre encantamentos, mistérios, descobertas, dúvidas, medo, coragem que nutriram sua jornada existencial.

Mêves é a inspiração de Ylana para a faixa “Voinha”, uma das melhores de “Janga”.

Canções
Das 10 canções de “Janga”, três já eram conhecidas: 

“Grão de Mundo Inteiro”, parceria com Manuca Bandini, lançada como single, em 2022. A faixa abre o disco. Poeticamente, ela já descortina o cenário lúdico por onde transita o álbum. “Fecho os olhos e sinto/ o infinito me teletransportar/ pra um dia bonito/ onde o tempo caía na dança/ quando corríamos/ à beira mar da nossa infância”. A faixa ganhou um visualizer, disponível no Youtube de Ylana.

“Somos Ondas”, lançada em 2020 , em meio à pandemia, já prenunciava – ainda que inconscientemente para ela – o trajeto que Ylana iria percorrer para desaguar em “Janga”. “O mundo é uma casa/ um corpo, uma alma/ dançando no espaço (...) nós somos como átomos/ dançando na molécula/ de uma pequena célula/ do que o mundo é”, dizem os versos iniciais da canção, que ganhou uma nova versão em “Janga”.

“Germinar” é uma parceria com Flaira Ferro, que já a havia lançado no seu “Virada na Jiraya” (2019), interpretada por parte do coletivo A Dita Curva (do qual Ylana e Flaira também fizeram parte). A faixa alcançou a marca de mais de 1 milhão de plays nas plataformas digitais. Em “Janga”, ela ganhou uma nova versão.

“Voinha” é a faixa mais tocante de “Janga”. Foi composta para a avó Mêves Gama. Ela relembra imagens, vivências e situações aparentemente prosaicas, mas de grande dimensão poética e afetiva. Memórias tão íntimas, mas comuns a tanta gente.

 

 
 
 
 
 
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Em “Voinha”, Ylana divide vozes com Isaar. “Ter Isaar no disco foi um acontecimento dos mais importantes. Essa mulher que é uma referência do sagrado corporificado, que é uma grande influência para mim enquanto artista e enquanto mulher”

Outra participação na faixa  – e também em "Onira Mãe Rainha" e "Flecha" – é de Laís de Assis, com sua viola. "Laís, pra mim, também é uma artista transgressora, uma mulher que toca viola nordestina. O som da viola nordestina é um som que ocupa também a minha infância... a gente escutava muitos cantadores de viola. É muito importante Laís nesse disco", exalta Ylana.

Outra de sabor lúdico é “Brinquedo de Mão”, que lista elementos relacionados a uma antiga infância, gerações atrás (o que hoje chamam de “cringe”). Curiosamente, o beat que conduz a música é de Bento Queiroga, filho mais velho de Ylana, que faz parte de uma geração que tem o celular como brinquedo de mão.

É, ao mesmo tempo, uma saudade dos tempos de “pão de carroça (...) fita de VHS no videocassete (...) zumbido na escola bem na hora de largar” e uma crítica a “esse novo brinquedo de mão tecnológico, que é o celular”, que “não dá conta de construir o imaginário natural e orgânico que a gente precisa ter”, diz.

Encantados
“Onira Mãe Rainha” e “Flecha” são canções que dialogam com o sagrado, com o universo espiritual, com as matrizes africanas e indígenas que habitam muitas de nossas crenças.

A primeira, assinada por Yuri Queiroga, exalta Onira, entidade que intersecciona Iansã e Oxum. O que era para ser, inicialmente, uma parceria de ambos, acabou se tornando um presente para a irmã cantar.

“Nós somos flechas atiradas no nada”: este “mote” foi soprado/dito para Ylana, inspirando “Flecha”. Uma mensagem de confiança em nossas próprias potencialidades contra todo e qualquer medo que nos paralisa diante da vida.

“A gente só tem que se manter atento e ereto para atravessar o tempo, a gente não tem nem que saber muito, nem controlar nada. Não tem nem que chegar em um alvo, só tem é que se atirar, com toda nossa atenção e verdade”, conta Ylana.

Relíquias
Ylana conta que, pela primeira vez, participou das escolhas e definições de tudo que envolvia o álbum. Músicas, produção/sonoridade (sob a maestria de Yuri Queiroga), capa do disco… “é a primeira vez que eu tô envolvida em tudo, tudo, que eu me sinto totalmente  inteira numa história, totalmente apropriada de cada parte dela”, conta a artista.

Capa de "Janga", 3º álbum de Ylana | Imagem: Reprodução

A capa de “Janga” também é uma concepção de Ylana, que utilizou objetos, miudezas e lembranças que estavam em uma “caixinha de relíquias”, presente de uma prima que partiu cedo demais. O presente, aparentemente aleatório, ganhou sentido na concepção visual da capa.

Cidadã paulistense
Já em processo de finalização de “Janga”, Ylana foi presenteada com mais um sinal de que aquela jornada existencial fazia todo o sentido: em junho, ela recebeu o título de cidadã paulistense, concedido pela Câmara dos Vereadores do Município.

Outra curiosidade é que uma das músicas que fala diretamente do Janga e que foi gravada por Ylana não está no disco. O clipe “Frevo e Ciranda”, composição de Capiba, foi gravado na praia do Janga, citada na canção, e foi, recentemente, escolhido como “Melhor Clipe” de 2023, no Prêmio da Música de Pernambuco.

Ou seja: de forma mais explícita ou, então, sutil, tudo convergia para o Janga.

“‘Janga’ é um renascimento”, diz Ylana, que fez do novo álbum uma artesania afetiva, repleta de potência e coragem de quem tem viva a criança no coração, mas, com os pés bem assentados – em reverência – na ancestralidade.