OLIMPÍADAS 2024

Entenda como a Coreia do Norte usa a Olimpíada de Paris para "retornar" à comunidade internacional

País continua um dos mais fechados do mundo, mas atletas 'quebram' gelo diante das câmeras e ao lado de competidores do Sul

Atletas das Coreias e da China posam para selfie em pódio de Paris-2024 - JUNG Yeon-je / AFP

Na terça-feira passada, quando medalhas já estavam sendo distribuídas e atletas que treinaram ao longo de anos voltavam para casa de mãos vazias, uma imagem rodou rapidamente o mundo, mais pela política do que pelo lado esportivo: integrantes das equipes mistas de tênis de mesa da China e das Coreias do Norte e do Sul se juntaram após o pódio para uma selfie que rodou o mundo e foi apontada como um símbolo do espírito olímpico.

Dias depois, no sábado, quando Simone Biles garantiu seu terceiro ouro em Paris e Rebeca Andrade sua prata no salto, uma das finalistas chamava a atenção por aplaudir os movimentos da americana: An Chang-ok, ginasta norte-coreana que por alguns décimos ficou fora do pódio olímpico, terminando a final do aparelho em quarto.

Como as demais competidoras, ela posou para os fotógrafos e acenou para a câmera enquanto esperava a divulgação de sua nota.

 

Mas antes das selfies e acenos, uma gafe da organização quase criou um incidente diplomático: na cerimônia de abertura, os locutores que anunciavam os nomes das delegações que navegavam pelo Rio Sena anunciaram os atletas sul-coreanos como integrantes da delegação da República Popular Democrática da Coreia, nome oficial da Coreia do Norte. Em Seul, autoridades reclamaram e pediram inclusive que a Chancelaria apresentasse um protesto junto à França. O Comitê Olímpico Internacional (COI) rapidamente tentou colocar panos quentes no caso.

“Pedimos desculpas profundamente pelo erro que ocorreu ao apresentar a seleção sul-coreana durante a transmissão da cerimônia de abertura”, publicou o COI no X. O nome oficial da Coreia do Sul é República da Coreia.

Ausente dos jogos de Tóquio, em 2021, em meio ao fechamento total do país ao exterior, a Coreia do Norte chegou a Paris com uma delegação de 16 atletas, celebrados em sua saída de Pyongyang e que são vigiados de perto pelo aparato estatal de segurança. Passeios turísticos pela capital francesa sem supervisão estão vetados, assim como as idas a shoppings e lojas de souvenires (o que não impediu, segundo a BBC, An Chang-ok de conseguir alguns pins, trocados entre atletas e comissões técnicas e exibidos com destaque nos locais de competição e na Vila Olímpica).

Longe de ser uma potência esportiva como outras nações do antigo bloco socialista, somando 59 ouros desde 1964, quando estreou em Olimpíadas, a Coreia do Norte já usou bastante o esporte como uma ferramenta política. Em 1984, o país se juntou ao boicote liderado pela União Soviética dos jogos de Los Angeles, em retaliação ao movimento que afastou algumas dezenas de países das Olimpíadas de Moscou de 1980, liderado pelos EUA.

Em 1988, um novo boicote, agora contra a Coreia do Sul: incentivados pelo líder cubano, Fidel Castro, os norte-coreanos exigiam receber ao menos 11 dos 23 esportes dos jogos sediados em Seul, uma demanda que não foi aceita pelo COI. Em resposta, Pyongyang não participou dos jogos, ao lado de Cuba. Segundo um estudo do historiador Sergey Radchenko, publicado pelo Wilson Center, a iniciativa de Castro foi uma vingança por Havana não ter sido escolhida a sede dos jogos Panamericanos de 1987 (a cidade receberia o evento em 1991).

Nem só de protestos se faz a trajetória olímpica norte-coreana. Em 2016, pouco antes do início de um novo processo de aproximação diplomática entre Seul e Pyongyang, uma imagem vinda do Rio de Janeiro correu o mundo, da mesma forma como a foto dos mesatenistas: durante um treino, a sul-coreana Lee Eun-ju tirou uma selfie com a norte-coreana Hong Un-jong, antes do início das competições de ginástica artística.

Em 2018, quando os dois lados já conversavam abertamente, Kim Yo-jong, irmã do líder do país, Kim Jong-un, foi à abertura dos Jogos Olímpicos de inverno de Pyeongchang, e as duas nações competiram como uma só equipe de hóquei de gelo. E em mais um toque de espírito olímpico, o time, que perdeu todas as cinco partidas e terminou em último, foi treinado por uma americana, Sarah Murray.

O retorno aos Jogos Olímpicos da Coreia do Norte acontece em um momento de extrema tensão com o Sul, que inclui, além da já conhecida retórica e dos testes de mísseis e exercícios militares, propaganda através de alto falantes e balões com lixo e excremento humano através da fronteira. Kim Jong-un declarou que não buscará mais a reunificação, e que a Coreia do Sul é um país hostil, enquanto entre os sul-coreanos cresce o volume dos que desejam ver o país no “clube” das nações com armas nucleares, como o Norte.

Mas Pyongyang parece mandar um sinal de que está se abrindo aos poucos, em seus próprios termos. Visitas de dignitários estrangeiros, como o presidente russo, Vladimir Putin, começam a se multiplicar, assim como os eventuais grupos de turistas vindos da Rússia e da China. No caso russo, as trocas comerciais e militares — mesmo vetadas pela ONU e por sanções — aumentam a cada mês, e planos para novas ligações terrestres entre os dois aliados foram anunciados recentemente. Mas que ninguém espere grupos de mochileiros ocidentais chegando em massa ao aeroporto de Sunan, nos arredores de Pyongyang, uma vez que a nação ainda impõe muitas barreiras a quem quer visitá-la.

— [A Coreia do Norte] está fazendo o esforço de se reunir novamente com a comunidade internacional — disse BBC Jean H. Lee, analista e que liderou a primeira sucursal da Associated Press na capital norte-coreana. — [Isso acontece] sem levar em conta o que está aconteceendo com o programa nuclerar deles, que sempre foi o elefante na sala.

Neste contexto, as selfies e acenos dos atletas norte-coreanos parecem indicar também, além do desejo de se mostrar parte da comunidade internacional (e do esporte), uma diferenciação entre o povo sul-coreano e o governo sul-coreano, como disse à BBC o professor Ramon Pacheco Pardo, do King’s College, de Londres. Para ele, a mensagem é: não temos um problema com o povo, mas sim com as autoridades em Seul.

Uma mensagem que parece ser destinada, por enquanto, ao exterior: os jogos não estão sendo transmitidos pelas TVs estatais, e há poucas menções aos resultados na mídia impressa — em 2021, as primeiras transmissões de competições em Tóquio foram feitas dois dias após o encerramento. Até o momento, o país ganhou três medalhas em Paris, prata no tênis de mesa e nos saltos ornamentais, e um bronze no boxe.