VENEZUELA

"Podemos entregar as atas eleitorais ao governo do Brasil", diz venezuelana María Corina Machado

Em entrevista ao Globo, líder opositora reconhece o esforço do governo Lula para buscar criar um espaço de mediação

"Podemos entregar as atas eleitorais ao governo do Brasil", diz venezuelana María Corina Machado - AFP

Apesar de saber — embora não o diga explicitamente — que é vista por representantes do governo brasileiro como um fator problemático numa eventual negociação entre a ala mais forte da oposição da Venezuela e o governo de Nicolás Maduro, a líder antichavista María Corina Machado disse, em entrevista ao Globo, reconhecer o esforço do Brasil, juntamente com a Colômbia e o México, para criar um espaço de mediação entre as partes.

De forma taxativa, María Corina disse que, se esse esforço for bem-sucedido, ela fará parte das conversas: "Os venezuelanos, para dar seu aval a uma negociação que vai implicar concessões e compromissos, exigirão ser representados pelos líderes nos quais confiam, e somos Edmundo González [Urrutia] e eu”, disse, referindo-se ao principal candidato da oposição.

A líder opositora deixou claro que não pretende recuar um milímetro na reivindicação de que seja reconhecida a vitória de González e ofereceu ao Brasil, universidades, institutos especializados e especialistas em temas eleitorais o acesso às atas eleitorais que a oposição diz ter em seu poder.

— É importante que todas as vozes independentes, com credibilidade, que querem evitar a escalada de um conflito violento da Venezuela, possam se envolver e contribuir para que a verdade prevaleça — afirmou, enfatizando: — Obriguem o regime a entregar suas atas. Essas atas seriam a prova da fraude.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

O Brasil está tentando criar, junto aos governos da Colômbia e do México, um espaço de mediação entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição. Como a senhora avalia essa iniciativa? É possível?
Reconheço o esforço [do Brasil] e acho que é necessário que exista um espaço de mediação entre as partes para que a solução do conflito seja pacífico, e o mais rapidamente possível.

O mundo inteiro sabe o que aconteceu em 28 de julho, houve uma vitória monumental das forças democráticas.

Existe um genuíno desejo de mudança, porque Edmundo ganhou em todos os estados do país. Ganhou em municípios nos quais o chavismo venceu nos últimos 25 anos, e desta vez nós ganhamos por ampla diferença.

Tivemos uma organização da cidadania sem precedentes em nossa História. Graças a essa organização, temos provas irrefutáveis da vitória de Edmundo González, que estão disponíveis para o mundo inteiro. Maduro perdeu total legitimidade, e o mundo sabe disso.

Para conter a repressão, a violência, e buscar um entendimento entre as partes, uma mediação e uma negociação são convenientes.

Os três países têm canais de diálogo com os dois lados, e sua presença é importante. Mas também deveriam estar outros países da América Latina e da Europa. Estou de acordo que, nesta primeira fase, [estes três países] estejam levando o processo adiante.

A senhora, que fala com vários presidentes, tentou um contato direto com o governo de Lula e não conseguiu? Foi enviado um áudio ao presidente brasileiro?
Falo com muitos presidentes, e com alguns não falo. Falo com chanceleres e tenho comunicação com o governo do Brasil.

Quero reiterar meu agradecimento ao presidente Lula e à sua Chancelaria pelas gestões para assumir a proteção da embaixada e funções consulares da Argentina, incluindo a proteção de nossos seis colaboradores.

Setores do governo brasileiro consideram que a senhora seria um obstáculo numa mesa de negociação.
Os líderes dos venezuelanos são escolhidos pelos venezuelanos, não pela comunidade internacional, nem pelo regime [de Maduro]. Os venezuelanos, para dar seu aval a uma negociação que vai implicar concessões e compromissos, exigirão ser representados pelos líderes nos quais eles confiam, e somos Edmundo González e eu. No passado, Maduro escolheu com quem se sentou numa mesa de negociação, por isso os diálogos terminaram como terminaram. Mas esta situação é totalmente diferente, porque o regime foi derrotado, temos as provas da derrota, e o país está decidido a exigir o respeito à soberania popular, à verdade do que aconteceu no dia 28 de julho. Este é um processo firme, que avança. Apesar da repressão brutal, que deve ser denunciada firmemente por todos os atores internacionais. Os países envolvidos na questão venezuelana devem dizer que esta repressão é inadmissível e deve parar. Deve parar antes de qualquer negociação.

Na noite desta terça-feira foi detida uma dirigente de seu partido no estado de Portuguesa.
Sim, nossa diretora de comando. Ela foi sequestrada por órgãos de segurança do Estado. A repressão também chegou aos bairros mais humildes.

Prendem pessoas que simplesmente protestaram contra a fraude. É brutal.

Os atores internacionais devem entender que este é um regime deslegitimado, que optou pela violência, o único que lhe resta, para desmoralizar a população. Mas não vão conseguir. Estamos nos organizando para manter com firmeza a manifestação pacífica.

O medo voltou a se instalar na sociedade?
Claro que existe medo, não seria racional não ter medo. O importante é que, com a consciência de ser a maioria que somos, encontramos maneiras de superar o medo. É muito importante que a comunidade internacional tenha uma posição firme, que nos mostre que não estamos sozinhos.

Nossas testemunhas no dia da votação fizeram um trabalho incrível, e graças a eles conseguimos uma façanha cidadã que passará para a História. Temos as provas contundentes de que ganhamos. Se o regime entregar agora as atas, por pressão internacional, entregará as provas da fraude. Serão atas falsificadas.

Quem está contra a parede é Maduro, e ele se sustenta graças a um grupo reduzido de militares, é o que lhe resta. Essa cúpula militar está pressionando seus militares e também o Judiciário. Mas muitos estão resistindo.

Quero aproveitar para dizer que oferecemos a universidades do Brasil, institutos especializados, especialistas em temas eleitorais toda a informação que temos, inclusive contato com nossos técnicos e especialistas.

É importante todas as vozes independentes, com credibilidade, que querem evitar uma escalada de um conflito violento da Venezuela, possam se envolver e contribuir para que a verdade prevaleça. E vai prevalecer.

Não vamos desistir até que seja respeitada a soberania popular. A violência é provocada por Maduro. Hoje estamos unidos pela verdade inclusive com setores do chavismo, que não apoiaram a campanha de Edmundo.

María Corina Machado e Edmundo Gonzalez, opositor de Nicolas Maduro

A senhora pediria ao governo de Lula que analise as atas em poder da oposição?
Sem dúvida, a todos os governos do mundo. Esta disponível. Temos as atas físicas, que obviamente estão protegidas.

São documentos oficiais, originais, impressos pelas máquinas do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), e com assinaturas das testemunhas, membros de mesa e trabalhadores do CNE.

Temos 83,5% das atas, e temos essas atas porque funcionários do CNE acompanharam nossa luta. Podemos entregar as atas eleitorais ao governo do Brasil, e a qualquer outro governo do mundo que quiser constatar a validez do que temos.

Que obriguem o regime a entregar suas atas. Essas atas seriam a prova da fraude, as nossas são a prova da vitória de Edmundo.

O CNE tinha 48 horas, e os prazos venceram. Recorreram ao Tribunal Superior de Justiça e a uma sala eleitoral que não têm competência. O que estão fazendo é inconstitucional. A responsabilidade é do CNE.

Os dois lados estão firmes em sua posição. Como é possível superar esta crise?
Vamos um dia de cada vez. Primeiro, digo a todos os venezuelanos que não votaram por nós, ou não votaram, que estamos comprometidos num processo de reencontro da sociedade venezuelana. Não haverá vingança, nem retaliação.

Vamos fortalecer um sistema de Justiça no qual todos somos iguais perante a lei.

Digo às Forças Armadas que seus membros também têm esposas e filhos, também querem que seus filhos retornem ao país, e que nós queremos ter Forças Armadas a serviço da Nação, e não de uma parcialidade política.

Digo o mesmo a policiais, juízes e promotores, não cumpram ordens que contrariam a Constituição. Ao que estão na cúpula, digo que pelo seu próprio bem avancemos numa negociação, que parta do que aconteceu no dia 28 de julho, com garantias.

O chavismo é viável e bem-vindo numa Venezuela plural, sempre e quando acatem as regras da democracia. Muitos líderes do chavismo se aproximam de nós, estão com medo, estão sendo sufocados. Nunca estivemos tão fortes como agora, e nunca Maduro e o regime estiveram tão fragilizados.

A perda total de legitimidade é absolutamente irreversível. A violência os deslegitima ainda mais.

Na carta enviada pela senhora e González Urrutia aos militares alguns interpretaram que o candidato estava se autoproclamando presidente.
Um absurdo. O próprio presidente do Chile, Gabriel Boric, disse nesta quarta que o candidato autoproclamado é Maduro. Nós exigimos que Edmundo seja proclamado, de forma imediata, porque ele é o presidente eleito.