Morte fetal e explosão de casos: como a febre oropouche se tornou uma preocupação no Brasil
Até ano passado, localizada principalmente na região Norte, doença espraiou-se pelo país e tem série de mistérios envolvendo seu avanço
Só neste ano, cerca de 7,5 mil diagnósticos de febre oropouche foram identificados no Brasil, um número quase nove vezes maior do que os diagnósticos de 2023, segundo dados do Ministério da Saúde.
Trata-se de um avanço que marca não só o aumento exponencial de infectados, mas também o espraiamento da doença em solo nacional. Para se ter uma ideia, no ano passado, a doença esteve mais localizada na região amazônica do país, e foi identificada em apenas cinco estados, Acre, Amazonas, Roraima, Rondônia e Pará (este último com apenas um caso).
Este ano, porém, a realidade indicou um avanço menos localizado do vírus, sendo identificada em 22 estados brasileiros e mais o Distrito Federal — uma movimentação sem precedentes na história.
A doença, explica o infectologista Julio Croda, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, é diferente de outros males infecciosos já enfrentados no país.
A transmissão, por exemplo, se dá com o mosquito culicoides paraensis (popularmente chamado de maruim), diferente da zika, chikungunya e da dengue que são transmitidas por meio do já conhecido Aedes Aegypti.
O maruim, porém, se prolifera em ambientes com zonas de mata, mangues e brejos, sobretudo. Além disso, a doença também pode se desdobrar em quadros em que o sistema nervoso central é acometido, algo correlato à meningite.
—É uma arbovirose, mas é distinta (de outras doenças conhecidas). A zika é da família da dengue, a chikungunya é de outra família, assim como o oropouche que também é. O vírus é bastante diferente, mas clinicamente os sintomas são parecidos — explica Croda. — Esse aumento, vale dizer, não está ocorrendo porque ampliamos nossa capacidade de testagem no país, mas porque o vírus sofreu mutações e ganhou capacidade de replicar-se. Houve uma modificação genética do vírus que deu a ele vantagens, mais habilidade em sua transmissão além da região amazônica.
A mudança evolutiva do vírus, contudo, já reflete na realidade da população brasileira. No começo do mês, o Ministério da Saúde identificou ao menos três mortes em decorrência da infecção. Tratam-se dos primeiros casos fatais por oropouche conhecidos em todo o mundo, o que levanta uma série de questões sobre as causas de quadros tão severos da infecções acontecerem justamente no Brasil nesta temporada.
Os óbitos de adultos conhecidos são de duas mulheres que viviam no interior da Bahia. Ambas tinham bom estado de saúde e idade inferior aos 30 anos — ou seja, não há indicativo de que a infecção pelo oropouche tenha agravado doenças de base anteriores, o que aumenta a preocupação em relação ao vírus.
— Essas pacientes apresentaram sintomas muito parecidos com a dengue, tiveram mal estar, febre súbita e náuseas. Disso, elas evoluíram para queda de pressão e sangramento extenso. Foram feitos todos os exames, dengue, zika e chikungunya, além disso avaliamos ainda leptospirose, malária, HIV, foi uma pesquisa intensa. Depois, fizemos análise metagenômica, na qual buscamos partículas do vírus no paciente. Não houve nenhuma outra complicação, ou doença, que pudesse ser sugestiva para levar à óbito além do oropouche — afirma Márcia São Pedro, diretora da Vigilância Epidemiológica do estado da Bahia, estado que concentra 842 diagnósticos só neste ano. — Ainda é cedo para dizer porque elas evoluíram tão gravemente. Mesmo na literatura médica, era dito que em pacientes que apresentavam quadros graves, como a meningite, era possível observar um prognóstico bom, o que não aconteceu aqui na Bahia.
O estado também investiga o caso de um quadro de microcefalia em um recém-nascido. O bebê não resistiu às complicações da doença e faleceu, mas as razões para seu delicado quadro de saúde ainda não foram identificadas oficialmente. Também enfrenta situação delicada (em relação à saúde de gestações) o estado de Pernambuco, onde foi identificado o primeiro caso de morte fetal em decorrência da doença. Na região, três outros casos envolvendo morte de fetos são avaliados para determinar se houve influência do oropouche. Somente um deles teve teste positivo para presença do vírus no feto, conforme explica o secretário de vigilância e saúde Bruno Ishigami. Os casos (negativos e positivos) passam por mais investigações no Instituto Evandro Chagas
— Estamos em constante contato com o Ministério da Saúde. Mas ainda é preciso determinar o que é considerado um caso suspeito, confirmado ou descartado de oropouche. É por isso que somente confirmamos o primeiro caso de morte fetal, o outro paciente fatal (que tem laudo positivo para presença do vírus) segue em investigação — afirma Bruno Ishigami. — As mães estão bem, receberam alta hospitalar. Enfrentam mais o impacto da morte fetal, mas clinicamente elas estão bem. Essas mulheres não tinham um quadro clínico que demonstrasse gravidade. Tiveram o padrão de febre, dor de cabeça e uma delas teve manchas no corpo, mas nada além disso.
Em São Paulo também houve identificações inesperadas do vírus, embora não tenha registros fatais identificados. O estado foi capaz de identificar a presença da doença, em seus primeiros casos de transmissão autóctone (ocorridas diretamente na região e não importadas). De acordo com a coordenadora de Controle de Doenças do Estado de São Paulo, Regiane de Paula, a vigilância ativa de casos ajudou a identificar a presença do vírus em análises de rotina realizadas desde o começo do ano. Diante da especificidade da doença, porém, é difícil determinar grandes planos de contenção do vírus. Portanto, se faz importante fortalecer as medidas de proteção individual.
— O mais importante nesse momento é usar repelente e roupas de manga comprida. Se a pessoa morar em regiões de ocorrência (como o Vale do Ribeira) é importante colocar tela na casa, usar mosquiteiro — diz a especialista. — Também é preciso estar atento às áreas de bananal para não deixar restos de alimento, o que favorece a proliferação do mosquito.
Em meio ao avanço e incerteza em relação à doença, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) emitiu, na semana passada, um alerta epidemiológico em relação à doença. No documento, a entidade dá pistas sobre a razão da disseminação inesperada da doença e atribui o espraiamento dos casos ao desmatamento, mudanças climáticas e à urbanização não planejada. Além do Brasil, a doença se espalhou para Bolívia, Peru, Colômbia e Cuba, informou a Opas.
O Ministério da Saúde, por sua vez, diz que ao menos 8 casos de transmissão vertical (de gestante para filho) são investigados no país. Desse total, quatro evoluíram para morte fetal e outros quatro apresentaram anomalias como a microcefalia. “As análises estão sendo feitas pelas secretarias estaduais de saúde e especialistas, com o acompanhamento do Ministério da Saúde, para concluir se há relação entre oropouche e casos de malformação ou abortamento”, afirmou a pasta em nota.
Além disso, o Ministério da Saúde ainda diz que montou grupos de pesquisa para aprofundar o conhecimento sobre o transmissor da doença (o maruim), além de buscar avaliar em melhores condições o comportamento do vírus no organismo “Esses estudos estão sendo realizados em parceria com a Fiocruz, Instituto Evandro Chagas (IEC) e Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado do Amazonas”. Para especialistas na doença, é preciso aprofundar esse tipo de análise pois é altamente provável que a doença se torne um problema recorrente na saúde brasileira.
— Ainda não temos muitas ferramentas diagnósticas. Não é um exame oferecido facilmente e os convênios não oferecem — pondera o presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alberto Chebabo dando pistas do que é preciso o país organizar para fazer frente a essa doença — É preciso seguir na vigilância dos casos, manter observação da doença e entender as causas de suas complicações.