"Cidade de Deus": vinte anos após o filme, série quer mais foco nos moradores e menos violência
Produção começa a ser exibida na Max e HBO a partir de 25 de agosto; episódios serão liberados a cada domingo
Inspiram certa sensação de déjà vu as cenas iniciais da nova série “Cidade de Deus: a luta não para”. Lá estão o samba, a galinha prestes a virar almoço e mais a faca sendo amolada. É um início semelhante ao do filme lançado por Fernando Meirelles em 2002.
Não demora muito para que a voz de Buscapé (Alexandre Rodrigues), agora um homem feito que atende pelo nome de Wilson, dê conta da já esperada narração de voz mansa e conteúdo certeiro para acompanhar a imagem. Ele diz: “nos últimos 20 e poucos anos, essa tem sido minha rotina na cidade maravilhosa.
Eu saí da favela, mas a favela não saiu de mim. De lá para cá o bicho pegou no Rio de Janeiro”, o monólogo é permeado por barulhos de fuzil e imagens de caveirões se esgueirando entre ruas da comunidade.
Buscapé, que não largou a paixão pela fotografia e tornou-se um fotojornalista cascudo — atento aos conflitos de sua terra natal e aos excessos da polícia na Cidade de Deus — é uma das figuras que marca a relação entre o filme (indicado a quatro Oscars) e a nova produção da HBO com exibição no canal e no streaming Max, com lançamento no próximo dia 25, em seis episódios, um por semana.
É nesse flerte entre o passado e o futuro que a nova produção se desenrola. Há, é evidente, certa reverência ao passado, mas também um interesse em inaugurar novas narrativas — sobretudo no que diz respeito a morar em uma favela.
Se antes havia um hiper foco no que faltava para a comunidade (segurança, estabilidade financeira e perspectiva de futuro), agora a nova produção, dirigida por Aly Muritiba (também de "Cangaço Novo") quer enumerar trunfos da comunidade: a exemplo de uma associação de moradores forte, uma movimentação cultural robusta e a criação de laços afetivos com os vizinhos e conhecidos.
"Os personagens épicos (do original) voltam, mas dando a possibilidade que o público entenda quem são essas pessoas. É um conteúdo que não foi abordado no filme “Cidade de Deus” ", diz Alexandre, o Buscapé.
"O que me fez me apaixonar pela história de “a luta não para” é poder contar um ponto de vista que demonstra a minha vivência. Eu, como morador de favela, vejo que o que é retratado no filme é uma realidade, mas não é só aquilo. Ficou faltando um pedaço em “Cidade de Deus” a ser contado. Me alegra muito contar hoje o que é a comunidade. O ponto de vista do Buscapé, e da série, é falar sobre o potencial das pessoas."
A trajetória mais psicológica dos personagens faz com que as cenas de violência, sobretudo com mortes viscerais em cena, percam protagonismo quando há comparação com o longa. Aly Muritiba, o diretor, diz que trata-se de uma nova abordagem adotada desde o início da produção.
"Me interessa mais o efeito da violência do que a violência. Há mais foco em como uma troca de tiros impacta na vida de uma trabalhadora que precisa se deslocar para a Zona Sul do que o tiro pegando na carne de alguém. Tenho mais interesse no luto da mãe que perdeu o filho do que na morte do rapaz em si. É por isso que a nossa violência está presente, mas é menos gráfica do que em outras produções. Porque não estávamos interessados em reiterar esse aspecto. A câmera está apontada para outro lugar — afirma."
É uma série de muita ação, mas com muito mais tensão.
Atores de volta
Entre os nomes que estão de volta está Roberta Rodrigues, que aparece na pele de Berenice e mais Edson Oliveira, cujo trabalho é dar vida a Barbantinho, o amigo fiel de Buscapé desde a infância que tornou-se presidente da associação de moradores. Na atual série, ele tenta eleger-se vereador e torna-se o cara mais “considerado” da Cidade de Deus, conforme pontua o roteiro.
"O filme é um marco, ele conta a história de um lugar. Mas eu particularmente ficava me perguntando: qual trajetória o Barbantinho teria vivido após o filme? E era algo que na minha cabeça jamais seria contado. Pensava se ele realmente tinha se tornado bombeiro, como sonhava. Ao ler o novo roteiro, pude me surpreender. A série escancara a porta, entra nas camadas dos personagens ", diz Edson.
"Não imaginei o personagem com essa dimensão toda."
Roberta Rodrigues, cuja personagem Berenice ganha mais potência do que no longa de 2002, é cautelosa ao falar sobre os rumos de seu núcleo. Liderança negra na região, Berenice foi apontada, nas prévias da série, como uma figura inspirada na vereadora Marielle Franco (1979-2018), cria do complexo da Maré e importante ativista política. A comparação, contudo, causa certo desconforto na atriz, que sugere uma nova perspectiva para a personagem, em respeito, inclusive, à memória de Marielle.
"Não gosto nem de dizer que tem relação com a Marielle, acho que poderia ser desrespeitoso da minha parte. Marielle só não está presente porque a vida dela foi ceifada. Aqui conto a história de uma mulher que vive, pois se a gente morre a gente não continua contando a história, ", emociona-se a atriz.
"Ah, dizem que a pessoa morre e vira semente. Virar semente é poder seguir e fazer as coisas acontecerem. Essa é a verdadeira semente do ser humano. Marielle deveria estar viva. Não posso nunca dizer que é uma história baseada nela, seria um grande desrespeito."
Roberta diz que enxerga como necessária a sobrevivência da personagem como uma forma de inspirar a audiência que possa se identificar com a jornada de Berenice.
"Até conversei com diretores e executivos e disse que não aceitava que a Berenice morresse (no enredo), não posso mostrar para as meninas pretas e para as pessoas da periferia que se elas decidem revolucionar e batalhar pelos direitos vão morrer. Não quero mais isso. Ela vai viver, contar a história, descobrir coisas. A arte tem o poder de transformar. Temos o direito de viver."
Conflitos em alta
O grande conflito que se passa na Cidade de Deus em 2004, época em que a série se passa, é protagonizado por Bradock (vivido por Thiago Martins, o “Lampião” do filme) que deixa a cadeia pelas mãos de sua advogada e companheira Jerusa (Andreia Horta).
Ambiciosa, a mulher é quem dispara uma briga pelo comando do tráfico na região, até então nas mãos de Curió (Marcos Palmeira) um tipo de patriarca do crime que evita conflitos armados no entorno. Thiago, revelado pelo filme de 2002, tinha prometido a si mesmo não mais fazer papéis na ficção ligados à criminalidade. Mas ao receber o convite, reconsiderou.
"Eu não ia fazer o "Cidade de Deus" em 2002, com 12 anos, tinha sido aprovado nas oficinas, mas ninguém me avisou e eu perdi os processos. Meu papel era Caixa Baixa 2 (ou seja, um personagem mais coadjuvante, sem nome), mas acabei virando o Lampião e 20 anos depois eu virei o Bradock ", impressiona-se.
Fátima Toledo (a célebre preparadora de elenco) cruzou meu caminho e me tornou Lampião. Eu tinha me prometido, aos 17 anos, que não faria mais bandidos.
Perdi muitos convites, mas não me arrependo. Mas dessa vez senti que era a hora de voltar a fazer. Ele não é qualquer bandido, por trás dele há uma história, um sofrimento, um abandono e uma falta de cuidado. Quando vi, pensei: interessante, vou voltar a fazer bandido.
Ao lado dele está Jerusa (Andreia Horta). Uma das personagens mais truculentas da trama. Capaz de matar alguém que a desagrade com um tiro à queima roupa.
"É uma personagem que me confronta com sentimentos que não lanço mão na minha vida e capaz de fazer ações que vou morrer sem experimentar. Ela é muito real. Hoje em dia existem mulheres muito poderosas e articuladoras dentro dos esquemas brasileiros, sejam eles quais forem, no setor de armas, política, seja qual for ", diz Andreia.
"Ela tem uma capacidade de raciocínio muito rápida. Como intérprete fiquei muito fascinada. É alguém com uma maldade no coração. Me perguntaram quando ela ia se humanizar e, bem, acho que a maldade é parte da humanidade. Ela é o fogo do inferno."
Por falar em mulheres, a nova trama não economiza em personagens femininas. Além de Jerusa e Berenice, há ainda a jornalista investigativa Lígia (Eli Ferreira) mais Cinthia (Sabrina Rosa), que aparece no filme original como a namorada de Mané Galinha (Seu Jorge).
Na produção de 20 anos atrás, Cinthia, embora pouco apareça no enredo, está envolvida em uma das cenas mais dramáticas da história: é vítima de um estupro cometido por Zé Pequeno (Leandro Firmino). Agora, porém, a moça ressurge nas telas com enredo próprio e importância na comunidade, como uma líder local.
"A maioria das comunidades são matriarcais. A Cinthia representa a mãe esperançosa que quer dar oportunidade para o filho, a figura que mostra que a vida tem outras possibilidades ", entrega.
Apesar da seleção de diferenças, há um fator que pode unir as duas produções: o desejo de fazer “a luta não para” ter fôlego internacionalmente.
"É um lançamento mundial, com investimento de marketing tal qual as séries americanas têm fora do Brasil. A qualidade da produção é irretocável e há uma equipe americana que já assistiu e diz que há potencial em atingir público ", diz Silvia Fu, diretora senior de conteúdo de ficção da Warner Bros. Discovery.
"O nosso sonho é atingir o que o filme atingiu."