ENTREVISTA

Governo Lula despreza a educação de base, afirma o ex-ministro Cristovam Buarque. Confira

Cristovam Buarque veio ao Recife para lançar, hoje, a partir das 18 horas, no Furdunço Café e Cultura, na Tamarineira, o seu novo livro "Jogados ao mar", que provoca um novo debate sobre a educação no País.

Cristovam Buarque critica Governo Lula - Agência Brasil/EBC/Divulgação

Ministro da Educação no primeiro mandato de Lula, o ex-senador Cristovam Buarque, do DF, que deixou a pasta em 2024, poucos meses depois de ser escolhido, ainda tem uma postura crítica em relação ao modelo de educação de Lula em seu terceiro mandato. “Eu vejo o governo Lula muito preocupado com o ensino superior, mas pouco preocupado com a educação de base”, diz ele, nesta entrevista exclusiva à Folha. Ele veio ao Recife para lançar, hoje, a partir das 18 horas, no Furdunço Café e Cultura, na Tamarineira, o seu novo livro “Jogados ao mar”, que provoca um novo debate sobre a educação no País.

Que mensagem traz seu novo livro na temática da educação?

Com o tempo que tenho, agora como professor aposentado da UNB (Universidade de Brasília), voltei a escrever ficção. Escrevi esse romance que é meio policial, mas não deixo de explorar o lado educacional. É a história de meninos jogados ao mar. “Jogados ao Mar” é deixar a escola antes da educação de base, antes de concluir um ensino médio de qualidade. Então, o livro é a história de um jornalista do Correio Braziliense querendo descobrir por que tem crianças desaparecendo. Algumas indo embora da cidade. Outras que ficam na cidade, mas não estudam mais. São os jogados ao mar, essa é a história do livro.

Então é uma ficção e realidade ao mesmo tempo?

Tanto ficção como realidade, que, na capa, tem escrito ficção. O editor insistiu em colocar essa palavra porque eu sou mais visto como autor de ensaios, de textos de economia, de política. E eu disse “tudo bem, você coloca ficção, mas no lugar do ‘i’, de ficção, você coloca um ponto de interrogação, para ficar a dúvida. É ficção ou não é ficção?”. É ficção, os personagens são criados, mas é óbvio que estou escrevendo ali um retrato da realidade brasileira em que 50% apenas das crianças, jovens e adolescentes terminam o ensino médio. E desses, metade, no máximo, termina o ensino médio com a competência que se exige hoje para uma vida no mundo moderno. Também é uma ficção, mas totalmente baseada na realidade.

Melhorou a educação no Brasil desde que o senhor foi ministro para cá?

Melhorou desde muito antes e vem melhorando. Mas vem melhorando numa velocidade que nos abandona. Quando você está num mundo que muda, se você muda pouco, fica para trás. No final dos anos 80, por exemplo, quando vem a redemocratização, o Brasil tinha entre 20 e 30% das crianças fora da escola, sem matrícula nenhuma. Hoje, quase todas estão matriculadas. A gente pode dizer que tem 2% das crianças que nunca se matricularam. Então, 98% é um avanço. Só que matrícula não significa frequência. A criança se matricula, mas não vai. Frequência não significa assistência. A criança vai e, depois da merenda, vai para casa. Assistência não significa permanência. A criança assiste um ano, dois, três, mas abandona. Permanência não significa aprendizado. E ainda mais: aprendizado não significa que é o que se necessita hoje para ter um mapa que lhe permita caminhar na vida. O que exige um ofício, por exemplo.

O que exige mais?

Exige saber muito bem o português e até um idioma estrangeiro, saber e entender as coisas do mundo. Isso, hoje, são poucos os que estão conseguindo. E os que estão conseguindo, em geral, são os que pertencem a uma classe que pode pagar uma escola boa ou aqueles que têm a sorte de entrar numa escola federal, pública, que são boas. Ou aqui e ali tem uma escola pública municipal ou estadual boa também. Mas a grande maioria tem escolas ruins. E, além disso, mesmo que esteja em uma escola municipal ou estadual boa, de vez em quando, no meio do ano, vem uma greve de um mês, até de dois meses.

As greves atrapalham muito?

Não tem escola boa com greve. A escola que tem greve não é boa, por melhor que ela seja, porque o aluno perde a motivação e deixa de aprender o que ele precisa na hora certa. Melhorou? Melhorou. Mas estamos melhores? Estamos comparando com antes. Mas não estamos melhores comparando com os outros países. Não estamos melhores comparando com o que hoje é preciso. Só para dar um exemplo e terminar: quando eu era menino, jovem, aqui em Recife, tinha muitos restaurantes bons com cozinheiros que não sabiam ler, analfabetos. Não havia a menor exigência. Hoje, os restaurantes bons estão exigindo que fale francês, que saiba ler uma receita em inglês. Melhoramos ficando para trás e isso vai impedir o Brasil de progredir como nós precisamos.

Em relação ao Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), como o senhor viu o avanço do Ceará?

A gente deve se orgulhar. Aqui em Pernambuco e em Alagoas também tem boas escolas. Mas é se orgulhar comparando com o resto do Brasil. Nós demonstramos que aqui nós podemos fazer melhor que o resto do Brasil, mas não dá para se orgulhar se a gente compara este êxito nordestino com os países que têm realmente boa educação. Eu costumo dizer que não quero comparar o que nós somos hoje com o que nós éramos, mas com o que os outros bons países são.

Como assim?

Traçando um paralelo, eu estava assistindo essas olimpíadas de vez em quando, e lembro que, quando terminou o jogo do futebol feminino, nossas jogadoras tiraram o segundo lugar, ganharam medalhas de prata e choraram. Elas choraram porque não foram campeãs. Nós não choramos porque estamos entre os últimos em educação. Até que estamos “menos últimos” do que antes. Então, dá para dizer, ótimo, a gente tem que se orgulhar - mas não dá para comemorar. A gente só pode comemorar quando está saudável. Quando a temperatura de um doente diminui um pouquinho, baixa de 40ºC para 39ºC, você tem que ficar contente, mas tem que comemorar mesmo quando chega a 37ºC, 36ºC. Nossa educação está muito ruim, apesar de aqui e ali estar mostrando que alguns estão melhorando.

Mas o Ceará dá uma demonstração de avanço...

Tudo bem, melhorou ali no Ceará, em Pernambuco, em uma ou outra escola. A pergunta é a seguinte: como é que a gente leva isso para o Brasil inteiro? Vai esperar que surjam prefeitos nas outras quase seis mil cidades e que eles sejam substituídos por outros prefeitos que também queiram investir em educação? Não dá para esperar. Por isso, a sugestão que eu defendo, a proposta que eu tenho é que o Brasil precisa ter uma estratégia para federalizar a educação de base.

Como seria isso?

O governo federal assumindo as cidades que não têm condições de dar uma boa educação para suas crianças. As escolas federais, como aqui mesmo, em Pernambuco, o Colégio de Aplicação, o Colégio Pedro II, as escolas técnicas são escolas boas. Por que não fazer todas assim? Não dá para fazer de um dia para o outro, nem de um ano para o outro, mas o Brasil poderia ter uma estratégia pela qual o governo federal fosse adotando por cidade, não por escola, individualmente, a educação das nossas crianças. Em um prazo de dez, quinze, vinte anos, até mais um pouco, talvez, teríamos um sistema federal com a mesma qualidade para todos os alunos, independente da renda da família e do interesse da criança.

O senhor aponta isso nesse livro?

No livro, quis ficar com a qualidade da ficção. Eu me policiei para não parecer um panfleto com minhas ideias. Mesmo assim, eu vi uma resenha um dia desses de alguém dizendo que tinha algo de panfletário. Mas eu tenho escrito muito isso. Especialmente, um artigo que eu fiz na Veja, onde publico a cada quinze dias, cujo título é “As Cefes do Lula”. Cefes seriam Cidades com Educação Federal. É o que eu defendo para substituir os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública) do Brizola e os Ciacs (Centros Integrados de Atendimento à Criança) do Collor. Collor fez diversas escolas federais, espalhou pelo Brasil. Mas eu acho que o erro dos Cieps e dos Ciacs foi fazer por escola.

Tinha que fazer como?

Tinha que fazer por cidade. Todas as escolas de uma cidade seriam federais. Obviamente, isso tem que começar pelas pequenas. E que a cidade queira, não pode ser uma intervenção imposta pelo governo federal. Agora mesmo aqui, nós estamos todos falando do tal “Enem dos concursos públicos”. Por que a gente não faz um “Enem de professores?” Eu me orgulho de que a lei do piso salarial dos professores é minha, como senador. Então nós definimos um piso nacional do salário do professor, mas não definimos ainda um piso de conhecimento nacional.

Cada município faria o seu concurso?

Isso mesmo, cada município faz o seu concurso. O que eu defendo, antes de haver uma carreira federal, como tem nas universidades, é que o governo federal faça um concurso nacional para escolher quem tem as mínimas condições para ser professor. Quando o município abrir um concurso para professor, o candidato para se inscrever tem que levar esse certificado. Quando fui ministro, criei um programa chamado “Certificado Federal". Não era como eu estou dizendo, um concurso preliminar. A ideia era uma avaliação de todos os professores municipais e estaduais. Com esse certificado, ele receberia uma gratificação adicional paga pelo governo federal. Esse daí foi difícil conseguir aprovar. Os sindicatos foram contra. Mesmo assim, a gente aprovou, porque os professores ganhariam uma gratificação, quem é que não quer? Mesmo que condicionada a um concurso, uma seleção, uma avaliação.

Foi aprovado, mas o senhor ficou pouco tempo no MEC...

Meses. Então, logo que eu saí, o ministro que assumiu, pressionado pelos sindicatos, suspendeu isso. Aí parou, faz vinte anos. Foi uma pena que o Brasil não tenha adotado, já naquela época, isso. Talvez o Lula se anime, como ele se animou para trazer de volta um programa que foi do meu governo no Distrito Federal e que eu propus à Casa Civil do governo dele quando eu era ministro, esse que agora estão chamando de “Pé-de-Meia”.

O senhor criou quando governador do DF?

Esse programa eu que criei no DF, eu quis implantar no Brasil inteiro com o nome de “Poupança Escola”, esse era o nome que nós tínhamos. Agora voltou como “Pé-de-Meia”, que eu acho um nome ruim porque tira o foco da educação e coloca o foco na poupança. Mesmo assim, foi bom que ele trouxesse de volta. O Lula poderia criar um certificado como já tinha em 2003, no primeiro governo dele, e poderia fazer o tal do concurso nacional para definição do piso mínimo de conhecimento de cada professor. Ainda teria tempo de ele fazer isso, mas eu não vejo interesse. Eu vejo o governo Lula muito preocupado com o ensino superior, mas pouco preocupado com a educação de base.