Entre a casca e o núcleo. A verdadeira batalha das plataformas digitais
A celeuma mais recente no Brasil está por conta da decisão do Ministro Alexandre de Moraes em relação à suspensão do funcionamento do Twitter/X e à vedação do acesso à plataforma através de VPNs (Redes Privadas Virtuais), com a aplicação de multa pesada a quem o fizer. Nosso barulho, algo normal nesse tempo de tantas anormalidades, é filho e consequência de vários erros de interpretação, de compreensão e de intenção nos debates que assistimos em grupos privados e no mainstream.
Usemos a cebola, interpretada por algumas civilizações para explicações metafísicas sobre o ego, como metáfora para explicação do que nos acomete. A maioria de todos nós sabe o que é uma cebola e como se descasca. A camada mais externa é a casca. Tomemos a ideia de casca como a camada mais externa das plataformas digitais, especificamente os grupos de WhatsApp ou redes sociais, nos quais pessoas se ajuntam para debater.
Toda casca, como camada mais superficial de qualquer coisa, pouco tem da substância, mas identifica o objeto observado tal e, aqui e acolá, é tomada pela grande maioria como a essência exclusiva. Mas não é. Faz parte da coisa, mas não é toda a coisa. É apenas a parte mais visível ao mundo externo. Definir as coisas somente pelas suas cascas é algo por demais precário, mas é a pauta subjacente dos tempos atuais.
Vivemos um debate de casca somente, tomando como o único objeto verdadeiro, tanto pelo público externo, quanto por algumas das camadas mais internas desse mesmo objeto, ora por má-fé, ora por desconhecimento do todo. Uma espécie de “mito da caverna” intencional e obrigatório.
E o que está no interno dessa realidade/cebola das plataformas digitais são outras diversas camadas que compõem a sua essência até o seu núcleo central. Não necessariamente nessa ordem, mas as camadas internas dessa “grande cebola” são os usuários (pessoas físicas e jurídicas), os negócios que se ancoram nessas mesmas plataformas, os governos, o poder legislativo, o poder judiciário, os funcionários que operam essas plataformas, os donos dessas plataformas e os algoritmos que fazem a cebola ser cebola (a alma, o vácuo indecifrável), talvez o seu núcleo central.
A questão posta perante todos nós é que, de uma hora para outra, somente essa grande camada externa tem vociferado acerca da verdade. E, mais ainda, duas partes internas estão se digladiando para definir o que pode e o que não pode ser estruturado: o poder judiciário (Ministro Alexandre de Moraes) e o dono dessa cebola específica chamada X (Twitter).
Essas cebolas digitais nasceram e foram criando camadas a partir da velocidade das mudanças tecnológicas e permitiram que todos fossem capazes de participar da vida que se prenunciava com seu surgimento. Negócios passaram a ser ancorados nelas, governos apostaram nelas, mas também não temos como refutar: outras manipulações foram feitas ao sabor de negócios entre algumas dessas camadas.
Para fugir um pouco da cebola (Musk/Alexandre de Moraes), por exemplo, tivemos a confirmação de que Mark Zuckerberg, durante a pandemia, cedeu ao Governo Biden em não divulgar temas cientificamente demonstrados sobre algumas vacinas, o que afetaria negócios de interesse do Governo Americano e da eleição que se desenrolava por lá.
Voltando à nossa cebola, o que causa espanto, e isso é o que não pode ocorrer, é que estamos vivendo apenas uma superficialidade no debate.
A casca da cebola é tomada por verdadeira e, pior, manipulada por interesse de outras camadas internas, o que termina por camuflar o que interessa mesmo a esse debate. Não menos importante, temos que observar que, nos tempos atuais, o Executivo e Legislativo, duas outras camadas, ou por conveniência, omissão ou conluio com a parte que tem demonstrado mais poder (Alexandre de Moraes), têm se abstido de cumprir seu papel nisso tudo.
Feita a metáfora para emitir minha opinião, penso que, como toda nova tecnologia, as plataformas digitais necessitam de alguma regulação e transparência. Como o primeiro avião ou carro, que causaram inúmeros acidentes e depois foram regulamentados por códigos de trânsito e aéreo, as plataformas digitais também precisarão passar por isso.
O que temos assistido é, lamentavelmente, um oportunismo político sob o pretexto dessa regulamentação, a partir de inquérito que, desde o seu nascedouro, tem sido a panaceia para solução de todas as nossas mazelas. Temos a obrigação de garantir a livre expressão, pois sem ela jamais viveremos uma democracia. As Plataformas Digitais não são somente espaços de seus donos ou do Estado tutelador, mas das pessoas que hoje e no futuro somente através delas poderão exercer direitos de voz e opinião, sem que isso tenha que passar pelo filtro de jornais, censores estatais e dos donos das plataformas.
E, por último, ao mesmo tempo que entendo ser abominável qualquer dono de jornal/plataforma desrespeitar decisão de um Estado, não menos abominável para mim é ver poderes hiper concentrados na mão de uma única pessoa, que, a despeito da conivência silenciosa de muitos em não buscar regras claras, calam-se aos “empastelamentos” advindos do debate casca: calar este ou aquele desafeto político em nome da democracia. Não podemos permitir que o debate sobre a casca oculte o que realmente importa: o núcleo da democracia está em jogo.
* Advogado especialista em Direito Autoral e Transformação Digital.
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