TECNOLOGIA

Irlanda debate o que fazer com 13,8 bi da Apple que não queria receber

Tribunal de Justiça da UE concluiu que valores devidos pela empresa, já depositados em conta judicial, devem ir para os cofres públicos do país

Apple - AFP

A Irlanda acaba de se ver diante de um desafio que muitos países invejariam: decidir como gastar um ganho inesperado de € 13,8 bilhões (R$ 86 bilhões) que a Apple foi condenada a pagar em impostos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Isso equivale a 14% dos gastos governamentais irlandeses deste ano, ou cerca de € 2.700 (R$ 16,8 mil) para cada habitante do país.

Numa ironia do destino, o governo irlandês sempre afirmou que não achava que a Apple devia esses impostos. Mesmo assim, nesta terça-feira, o Tribunal de Justiça da UE sustentou uma decisão histórica de 2016 de que a Irlanda violou as leis de incentivos estatais ao conceder à gigante americana da tecnologia benefícios fiscais que resultaram em uma vantagem injusta.

O dinheiro envolvido está em um fundo de custódia desde uma decisão inicial do tribunal da UE em 2016. A comissária da Concorrência da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, disse em uma entrevista coletiva que os impostos “devem ser liberados para o estado irlandês”.

O Ministério das Finanças da Irlanda afirmou, em um comunicado, que “respeita as conclusões”, ainda que tenha continuado a insistir que “a Irlanda não concede tratamento fiscal preferencial a empresas ou contribuintes.” Segundo o ministro das Finanças da Irlanda, Jack Chambers, o processo de transferência dos ativos do fundo de custódia para o governo levará algum tempo.

— É um processo complexo que deve levar vários meses para ser concluído — disse Chambers a jornalistas nesta terça-feira. — É um pagamento único e teremos discussões com os líderes partidários sobre quais serão os próximos passos.

Na conta de custódia, os fundos vêm gerando juros desde que foram pagos pela Apple em 2016. O governo irlandês afirmou em julho que o valor total do fundo é de € 13,8 bilhões, após gerar € 400 milhões em 2023. O total representa cerca de 15% do próximo Orçamento público da Irlanda.

Eleições à vista
A súbita bonança financeira ocorre enquanto os políticos irlandeses esperam que o governo convoque uma eleição nos próximos meses, o que marca o debate sobre como usar a receita extra.

Os partidos de oposição já estão pedindo um debate parlamentar sobre como usar o dinheiro, com críticas de que o governo defendeu interesses corporativos e não do público.

— Todo mundo vai exigir tudo, e vai ser muito difícil para o governo dizer não quando eles querem basicamente voltar ao poder — disse Aidan Regan, professor associado da Escola de Política e Relações Internacionais da Universidade College de Dublin.

A Irlanda enfrenta uma crise habitacional e tem um número recorde de pessoas sem-teto devido à falta de oferta e aos preços elevados dos imóveis. Ivana Bacik, líder do Partido Trabalhista, disse em uma postagem na rede social X que os recursos da Apple poderiam “ser usados para apoiar um fundo habitacional dedicado a longo prazo.”

Orçamento de 2025 já está decidido
No entanto, o orçamento para 2025, que será anunciado em 1º de outubro, já foi decidido, disse o ministro Chambers:

— Isso não impactará os parâmetros já estabelecidos para o Orçamento de 2025.

A Irlanda está na posição invejável de ter um dos raros superávits orçamentários da Europa, graças à presença de diversas empresas multinacionais no país.

Em setembro, o governo irlandês relatou um aumento significativo na arrecadação de impostos corporativos e trabalha para criar um fundo soberano que o Ministério das Finanças estima que possa eventualmente atingir € 100 bilhões (R$ 624 bilhões).

Mesmo com finanças públicas tão saudáveis, €13,8 bilhões ainda é uma “quantia enorme de dinheiro para um país pequeno,” disse Regan, da Universidade College de Dublin.

País atrai multinacionais com impostos baixos
Havia preocupações de que o caso geraria incerteza em relação à política fiscal na Irlanda, onde a baixa carga tributária para empresas há muito é um atrativo para multinacionais.

O país continua sendo um hub atraente para as indústrias de tecnologia e farmacêutica. Muitas das maiores empresas do mundo, incluindo Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, Alphabet, controladora do Google, e a fabricante de medicamentos Pfizer mantêm grande presença física por lá.

A Apple foi uma das primeiras gigantes da tecnologia a se estabelecer na Irlanda, como resultado da política fiscal iniciada entre as décadas de 1980 e 1990, para atrair investimentos estrangeiros. A empresa estabeleceu sua sede europeia perto da cidade de Cork, no sul do país, em 1980, e agora emprega cerca de 6 mil pessoas na Irlanda.