Israelenses deslocados desconfiam de Netanyahu e dizem não apoiar nova invasão no Líbano
Ao todo, 60 mil moradores foram retirados de região no lado israelense
O fluxo constante de avisos, alarmes e ameaças de ataques na fronteira de Israel com o Líbano tem formado uma guerra psicológica que foi ancorada no cotidiano dos civis. Dela fazem parte os 60 mil moradores que foram retirados da região no lado israelense, segundo o tenente-coronel Yarden (que pediu para não ter o sobrenome divulgado).
Assim como outros membros do Exército e do governo do Estado judeu, ele repete como mantra que o retorno desses habitantes às suas casas é uma condição inegociável para a estabilidade do país.
Para o professor Amazia Baram, do departamento de Oriente Médio e Estudos Islâmicos da Universidade de Haifa, a guerra dividiu os 10 milhões de israelenses ao meio. Cerca de 50% defendem um acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza que inclua a troca de reféns por prisioneiros palestinos — e ao menos a retirada das tropas israelenses de algumas áreas do enclave. Baram diz defender a “retirada total”, o que, segundo ele, acabaria com os ataques do grupo xiita Hezbollah, que tem atacado Israel quase diariamente desde o início da guerra.
— Mas há outros 50% que não estão dispostos a fazer concessões, nem a apoiar um cessar-fogo, nem a liberar reféns em troca de prisioneiros — continua o professor. — Eu acredito que a minha visão da disputa é a correta, porque libertar os reféns é uma dívida moral. Temos que tirá-los de Gaza porque o Estado de Israel os traiu — argumenta.
Ataques constantes
Em nenhum momento desde o início da guerra atual, em 7 de outubro de 2023, a superioridade militar de Israel foi questionada, apesar das várias frentes abertas (em especial as de Gaza e do Líbano), afirma Yarden.
Após o ataque sem precedentes do grupo terrorista Hamas contra Israel naquele dia, quando cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas e 250 sequestradas, os inimigos do Estado judeu tentaram causar o maior dano possível no território israelense. Patrocinados pelo Irã, eles são impulsionados pelo crescente número de mortos — são mais de 41 mil até hoje — que a ofensiva israelense causou em Gaza.
Nesse período, cerca de 300 projéteis iranianos sobrevoaram Israel em 13 de abril em resposta a assassinatos no consulado do Irã em Damasco; um drone lançado do Iêmen por rebeldes Houthis em apoio ao Hamas atingiu um prédio em Tel Aviv em 19 de julho; um míssil lançado pelos mesmos rebeldes caiu nas proximidades do aeroporto Ben-Gurion em 15 de setembro; e no domingo, um dos quase 100 mísseis disparados do Líbano pelo Hezbollah atingiu a área residencial de Kiryat Bielik, perto de Haifa, em resposta aos intensos ataques da semana passada no território libanês.
Em todos esses casos, apesar do enorme arsenal usado nas ofensivas, apenas uma pessoa morreu: um civil israelense que estava numa casa atingida pelo drone em julho. O tenente-coronel Yarden atribui isso aos 90% de eficácia do sistema antiaéreo de Israel, que possui três camadas — sendo a última delas formada pelo escudo conhecido como Domo de Ferro. Além disso, o país está dividido em cerca de 2 mil zonas que permitem que os responsáveis militares separem os alertas por bairros, avisando apenas os moradores da área atingida e permitindo que os demais possam “seguir com as suas vidas”.
Vidas afetadas
Mas isso não significa que esses ataques não estejam influenciando o curso do conflito e, principalmente, o cotidiano dos 10 milhões de israelenses. Há quase um ano, os cidadãos de Israel vivem com a atenção voltada para Gaza e para a fronteira norte com o Líbano.
Estão, também, atentos às declarações de seus militares e políticos, com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu à frente, e com os olhos voltados para os anúncios da mídia e nas redes sociais. Não há um dia em que os alarmes não sejam ativados, e milhares de deslocados pelo conflito estão espalhados pelo país sem previsão de retorno para as suas casas.
Na comunidade agrícola de Shear Yashuv, a dois quilômetros da fronteira com o Líbano, um monumento relembra os 73 soldados que perderam suas vidas no que ficou conhecido como o pior acidente aéreo da história militar de Israel, em 4 de fevereiro de 1997.
Dois helicópteros colidiram sobre este local enquanto se dirigiam para uma das bases no país vizinho, à época ocupado pelo Estado judeu. Hoje, os sons de aviões de combate israelenses ecoam novamente no céu. Apenas no sábado, o Hezbollah lançou 65 foguetes contra a área — e a possibilidade de uma nova ocupação começa a surgir em meio à escalada da violência.
Um dos soldados mortos naquele acidente era Alejandro, filho do escritor e pintor Roberto Hofman. Após ser retirado de Metula, cidade de 2 mil habitantes que é um dos principais alvos do Hezbollah, ele tem vivido num hotel em Tel Aviv.
Ao relembrar a tragédia ocorrida há 24 anos, Hofman lamenta e diz que seu filho faria 20 anos pouco mais de um mês após a tragédia. Essa ausência irreparável, somada à morte de centenas de soldados durante a ocupação, e sua experiência de mais de 20 anos como vizinho de uma fronteira em constante conflito, o levam a descartar outra invasão no Líbano como solução.
— O que precisamos fazer é criar uma espécie de faixa no norte de Israel — sugere ele, que acredita que isso deveria ser acompanhado pela criação de novas bases militares. Hofman também defende o fim da missão da ONU no Líbano, considerada “inútil como força de paz”, e propõe sua substituição por tropas de países como EUA, França e Alemanha.
Retórica 'zero realista' de Netanyahu
Hofman, que chegou da Argentina em 1986 com sua esposa e dois filhos, é um dos 60 mil habitantes do norte de Israel que foram forçados a deixar suas casas desde o início da guerra (no Líbano, os retirados são por volta de 90 mil).
O pintor e escritor está entre aqueles que moram a até 5 km da fronteira com o Líbano — e que passaram a viver dispersos pelo país em hotéis, casas alugadas ou abrigados por parentes. Nos últimos dias, Netanyahu estabeleceu como objetivo que todos retornem para suas residências com segurança, mas os moradores desconfiam.
— Isso é zero realista — destaca Hofman ao ser questionado sobre os planos do premier. — A insegurança não muda apenas com palavras — acrescenta, em referência à retórica de Netanyahu, que ele considera estar longe de reconquistar a confiança dos moradores.
Esse não é o problema de Joseph Shoshana, um militar de 43 anos que recebe pensão após sua dispensa permanente por estresse pós-traumático. Ele não deixou sua casa em Kiryat Shmona, uma cidade de 20 mil habitantes a 2 km da fronteira, abandonada por 90% de sua população desde os primeiros dias do conflito.
Sua esposa, Michael, e seus filhos de 5 e 8 anos foram morar num hotel por um mês. Mas, como ela também é a cuidadora de Shoshana, eles acabaram voltando para casa. Nos últimos meses, a família tem coletado fragmentos de mísseis tanto do Hezbollah quanto da defesa antiaérea israelense.
— Tem sido um ano muito difícil, especialmente para as crianças. Mas esta é nossa casa, não temos outra. Entre o coronavírus e a guerra, estão destruindo a infância delas — diz ele. — Embora o governo libanês não possa controlar o Hezbollah e somente Israel possa, uma nova invasão do país vizinho seria um desastre. Nossa vida ficaria pior. A guerra é uma merda. Há muitos mortos, muitas baixas. Seria doloroso para todos — conclui, enquanto mostra no celular um novo alerta de possíveis ataques.