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Primeira infância: o despertar da aprendizagem

Primeiros seis anos de vida são os mais sensíveis e considerados fundamentais, pois formam toda a estrutura emocional e afetiva das crianças

Os primeiro mil dias de aprendizagem têm que ter muita estimulação para cada criança desenvolver o seu máximo potencial - Freepik

O processo de aprendizagem envolve, ao longo da vida, uma diversidade de experiências atravessadas por aspectos socioemocionais, culturais, psíquicos, físicos e cognitivos, sendo a primeira infância o ponto de partida desse longo ciclo de formação. A interação da criança com as pessoas e o ambiente ao seu redor, na escola e fora dela, lhe confere ferramentas importantes para seu pleno desenvolvimento.

Estudos demonstram que é a primeira infância - período compreendido entre os primeiros seis anos completos ou 72 meses de vida de uma criança - a fase mais sensível do ponto de vista intelectual e psíquico, pois forma toda a estrutura emocional e afetiva, além de áreas fundamentais do cérebro relacionadas à personalidade, ao caráter e à capacidade de aprendizado, úteis para o resto da vida.

“São nos primeiros anos de vida que ocorrem o amadurecimento do cérebro, a aquisição dos movimentos, o desenvolvimento da capacidade de aprendizado, além da iniciação social e afetiva”, detalha o Ministério da Saúde em seu site. 

Preparação
De acordo com a legislação brasileira, a idade escolar obrigatória é dos quatro aos 17 anos. Como preparação para a introdução escolar, o acesso das crianças à creche, voltada aos primeiros anos de vida, e à pré-escola, destinada aos últimos anos antes da idade escolar, ajuda a promover a primeira ambientação e socialização dessas crianças. 

“O trabalho que deve acontecer na creche precede a educação infantil, e os primeiros mil dias têm que ser garantidos com muita estimulação para cada criança desenvolver o seu máximo potencial porque, depois disso, elas continuam aprendendo, mas nunca na forma e na quantidade que aprendem até três anos de idade”, destaca Verônica Bezerra, especialista em Educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). 

“No Brasil, a creche é um direito da criança. O que significa que toda família que deseje uma vaga deveria ser atendida. A Constituição de 1988 prevê isso. Já a pré-escola é uma etapa obrigatória e, portanto, todas as crianças em idade pré-escolar deveriam estar matriculadas. Quando olhamos para a educação infantil percebemos que ainda há desafios a serem enfrentados. Um deles está no acesso”, pontua Mariana Luz, mestre em Psicologia Social (PPGPS-UERJ), doutora em Saúde e CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
 

Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

Social
Uma educação infantil bem feita está associada a melhores condições de vida adulta, não apenas no aspecto intelectual, mas também social, promovendo maiores salários, menor envolvimento criminal e melhor saúde física e mental no futuro. Segundo Mariana Luz, a educação das crianças impacta em desdobramentos socioeconômicos positivos.

“Esses benefícios são ainda mais significativos para crianças de famílias com baixa renda e baixa escolaridade, ajudando a combater a desigualdade social. Mas estas são as crianças que mais têm dificuldade de acesso. Entre as famílias de baixa renda, 60% das crianças nunca frequentaram a educação infantil”, detalha Mariana.

“Diversas evidências demonstram que investir nos primeiros anos de vida é uma forma efetiva de combater as desigualdades, romper o ciclo de pobreza que atravessa as gerações, evitar medidas compensatórias no futuro e proteger as infâncias de hoje e do amanhã”, argumenta.

“Quando a criança tem a oportunidade de uma educação infantil de qualidade, tende a trilhar uma melhor trajetória escolar nas etapas seguintes. Daí a necessidade de um cuidado especial com essas oportunidades, porque quando não há as mesmas oportunidades para todo mundo, é onde começam a surgir as desigualdades”, avalia o especialista em Gestão do Processo Educacional e diretor-executivo do Instituto Primeira Infância, Plantar Amor (Pipa), Rogério Morais.

“Cuidar da alfabetização na perspectiva do letramento e do numeramento. Não é só alfabetização pela alfabetização, palavra pela palavra, mas é a capacidade da criança utilizar a linguagem, a escrita, em favor do que pensa e do que vai descobrindo como experiência. É determinante para o projeto de escolarização que a alfabetização aconteça no tempo certo. Sem ela, a trajetória já começa ruim”, pondera Verônica, porta-voz do Unicef.

Parentalidade
Tão importante quanto o ambiente da escola é a família e a relação com os chamados cuidadores primários, que são quem está mais próximo da criança no dia a dia (mãe, pai, avós, familiares próximos ou babás). A orientação a esses cuidadores se chama educação parental e é de fundamental importância no primeiro ano de vida. 

“Se um cuidador primário, seja pai, mãe ou avó, conta história para os filhos, se brinca com ele, tudo é tão importante quanto o processo da educação formal para o desenvolvimento infantil nessa fase. Porque a criança sai da escola, mas continua aprendendo”, explica Rogério Morais. 

Rogério Morais, diretor-executivo do Instituto Primeira Infância, Plantar Amor (Pipa). Foto: Ed Machado

“Quando a criança vive num contexto de violência, num contexto de abuso, o que a gente chama de estresse tóxico, ela está o tempo todo em alerta, porque não sabe se vai comer, se pode apanhar ou ser violentada a qualquer momento”, pontua Rogério Morais. Segundo ele, o estresse tóxico faz com que a área do cérebro de defesa concorra no desenvolvimento com a área da memória e da aprendizagem.  

“Caso uma criança seja exposta a condições adversas, como privação nutricional, falta de estímulo, pobreza extrema, negligência ou violência, seu desenvolvimento cerebral pode ser comprometido”, alerta a psicóloga.

Perigo
Em um mundo digitalizado, a questão do contato com telas e os dispositivos digitais por crianças merece grande atenção. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) não recomenda a exposição de bebês e crianças pequenas a telas até os dois anos. Depois desta idade, o uso deve ser de, no máximo, uma hora por dia para crianças de dois a cinco anos - e de uma a duas horas para crianças a partir de seis.

“Por conta da disponibilidade da tecnologia, smartphones na mão, internet, essas últimas gerações são as que estão tendo mais contato com telas, e isso está provocando um desastre educacional e também na saúde mental das crianças”, alerta Rogério Morais.

“É sempre preferível que as crianças tenham menos contato com telas e mais atividades longe delas. Principalmente se essas atividades colocarem a criança como o sujeito da ação e com ludicidade. Em frente à tela, a criança é passiva e não protagonista”, argumenta Mariana Luz, sugerindo que o contato com as telas seja fiscalizado de perto pelos pais e professores.

Políticas
A primeira infância tem recebido atenção especial da sociedade, mobilizado debates e formulações de políticas públicas. Em 2024, o governo federal assinou um decreto presidencial estabelecendo diretrizes para a criação de uma Política Nacional Integrada para a Primeira Infância, usando como base o relatório do Grupo de Trabalho (GT) Primeira Infância do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável.

A Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal foi uma das instituições a assinar a relatoria técnica desse grupo, ao lado do Todos pela Educação. Segundo a gestora, existem diversos fatores que precisam ser levados em conta na formação infantil e receber atenção dos governos, sociedade civil e comunidade escolar, resultando em políticas públicas transversais.

“A primeira infância é uma área que pede uma política integrada e intersetorial. A criança pode ter comida, mas se não tiver educação de qualidade, se não tiver o atendimento de saúde adequado, se não tiver formação de vínculo, se não tiver os estímulos, não se desenvolve. É uma estratégia totalmente conectada”, opina a gestora da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. 

O Marco Legal pela Primeira Infância, instituído pela Lei Federal nº 13.257/16, e a Lei Estadual nº 17.647/22 são conquistas importantes. Levantamento feito pelo Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), mostra que entre novembro de 2023 e abril de 2024, houve um aumento de 47% no número de municípios com Plano Municipal da Primeira Infância (PMPI), totalizando 122 municípios pernambucanos com o PMPI elaborado – 66% dos 184 municípios do Estado.

“Investir em políticas públicas para a Primeira Infância deve ser prioridade absoluta, pois significa pavimentar um caminho seguro para o surgimento de adultos mais saudáveis e sociedades mais justas, sustentáveis, prósperas e felizes. Tudo isso motivou o Tribunal de Contas, que já atua em benefício da sociedade, a aprofundar o olhar para a Primeira Infância”, afirma o presidente do TCE-PE, conselheiro Valdecir Pascoal.

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