LITERATUA

Novo romance de Nelson Motta parte de cartas trocadas há 60 anos com antiga namorada

Com lançamento nesta terça (8) no Rio, 'Corações de papel' traz correspondência entre 1964 e 1965, com relatos de eventos culturais e políticos do período

Nelson Motta aprendeu a desenvolver um segundo gosto em sua trajetória profissional - Produção Cultural no Brasil/Divulgação

Entre 1964 e 1965, o jornalista, escritor, compositor e produtor musical Nelson Motta viveu um romance à distância com Ana Luísa: ele, do Rio, e ela da Europa, onde seu pai, um renomado crítico literário e professor universitário, passaria uma temporada lecionando entre Paris, Roma e Lisboa. Aos 20 anos, a distância entre os jovens, que se conheceram na Esdi-UERJ (Escola Superior de Desenho Industrial), se transformou em meses de uma intensa correspondência, entre juras de amor e debates sobre fatos políticos e culturais da época.

Em 2014, a designer e escritora Ana Luísa, casada há décadas com um cineasta e mãe de duas historiadoras, levou ao amigo Nelson Motta uma pasta azul com todas as cartas escritas por ele no período.

O conteúdo, considerado perdido por algum tempo, foi reencontrado na mudança do escritor do Rio para Lisboa (onde morou entre 2022 e 2023) e agora transformado em um romance, “Corações de papel” (Ed. Record), com lançamento nesta terça-feira (8) às 21h, no Blue Note Rio, em Copacabana.

Dez anos após receber as cartas e 60 anos após enviá-las, Motta diz ter se reencontrado com “aquele garoto”, em quem não se reconhece totalmente mas identifica muitos dos gostos que o levariam a uma carreira na música, cinema teatro e TV.

— Quando recebi a pasta não li de cara, dei uma amarelada. E voltei a procurá-la quando fui escrever minha autobiografia (“De cu pra lua: Dramas, comédias e mistérios de um rapaz de sorte”, de 2020), e não a encontrei. Mas foi tudo no tempo certo, depois que li pude assimilar e me emocionar com as cartas — comenta Motta, colunista do Globo.

— Invejei aquele garoto de 20 anos, e fiquei encantado com os dois jovens falando de amor e numa discussão cultural intensa, achando que sabiam de tudo.

No romance epistolar de apenas um lado (“As cartas dela não tenho mais. Me casei cinco vezes e ela, uma. Mais difícil para guardar”, brinca o autor) é possível ver as preferências de Motta e subentender as da antiga amada. Entre paixões literárias, musicais e cinematográficas divididas, citações ao cinema novo, à nouvelle vague e a fenômenos da cultura pop, como os Beatles. E indicações dos próximos passos da carreira do então estudante de design, como a incipiente parceria com Dori Caymmi, que sairia consagrada do FIC de 1966 com a campeã “Saveiros”, na voz de Nana Caymmi.

— Era uma troca incrível, ela era filha de intelectuais e tentava me “catequizar” na grande arte, e eu já começava a ir para um caminho mais pop — conta o autor. — Olhando em retrospectiva, acho que tivemos percursos muito coerentes.

As cartas também mencionam eventos políticos no Brasil pós-golpe militar, como a esperança de que o poder voltasse para os civis por eleições em 1965 e a prisão de Glauber Rocha, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, entre outros do chamado Protesto dos Oito do Hotel Glória, no mesmo ano.

— Parece piada hoje, mas realmente acreditamos que os militares deixariam o poder em 1965 e elegeríamos o Juscelino Kubitschek novamente — lembra Motta. — Fomos da geração que se apaixonou pelo futuro pela primeira vez, com a bossa nova, o cinema novo, o Teatro de Arena, o neoconcretismo. Foi duro entender que nos tiravam o Brasil que sonhamos.

Em tempos de aplicativos de relacionamentos, o escritor diz ter ficado curioso para ver a reação à troca antiga de missivas.

— Fico imaginando se um jovem de 20 anos hoje se identificaria com aqueles dois, com um tempo que uma carta levava uma semana para ir do Rio à Europa. Vou fazer o teste com as minhas netas — diz Motta, que completa 80 anos no próximo dia 29. — Tem uma coisa atemporal neste estado de amor, em que você acaba se apaixonando não só pelo outro, mas por você também.

'Corações de papel' Autor: Nelson Motta. Editora: Record. Páginas: 160. Preço: R$ 64,90.