MÚSICA

"Uma herança pode te matar", diz Alice Caymmi, sobre o peso do sobrenome

Celebrando dez anos do álbum 'Rainha dos raios' com edição 'deluxe', gravação inédita, remixes e shows em que canta Marília Mendonça e Gusttavo Lima, cantora e compositora conta que fez as pazes com a tia Nana

Alice Caymmi, cantora e compositora - Reprodução/Instagram

Alice Caymmi encontrou a mistura que mantém sua saúde mental em dia: psicanálise e teatro. Acrescente aí boas pitadas de música e terapia corporal reichaniana. É o resultado desta receita que a cantora e compositora de 34 anos tem levado aos palcos com “Rainha dos raios — A fúria”.

O show celebra dez anos do disco de 2014 que firmou o nome da neta de Dorival na cena musical brasileira e acaba de ganhar reedição em versão deluxe, turbinada por remixes. E também pela gravação inédita de “O amor”, música espanhola de Rafael Pérez Botija, vertida para o português por ela e pelo produtor Diogo Strausz.

Dirigido por Paulo Borges, grande nome da moda, com preparação corporal de Marina Faisal, o espetáculo ocupou o Teatro Oficina, em São Paulo, e vai virar produto audiovisual. A escolha do icônico espaço fundado por José Celso Martinez Correa não foi à toa. Ali, aos 19 anos, ao assistir à montagem de “As bacantes”, Alice entendeu que teatro não era só Stanislavski, e que a tragédia grega que inspira sua trajetória artística (vide o álbum “Electra”, de 2019) podia ser encenada de forma transgressora.

Uma versão adaptada do show foi apresentada no Teatro Laura Alvim, em Ipanema, no mês passado, quando ela entrou em cena sozinha. Na companhia apenas do violão (formato que repete dias 18 e 19 no carioca Manouche), ocupou a sala toda com seu vozeirão — principalmente quando cantou, a capela, “Infiel”, hit de Marília Mendonça. A presença de palco veio com tudo no drama de cortar os pulsos “Agora estou sofrendo”, famoso em dueto de Calcinha Preta e Gusttavo Lima.

O resultado da performance arrebatadora que vem mostrando reflete um momento em que se sente mais à vontade na própria pele. Se já desabafou sobre a prisão dos padrões, Alice agora parte do próprio corpo para dizer tudo que deseja.

— Fui entendendo o tamanho do meu corpo grande. Resolvi fugir das palavras, dançar as ideias. Fiz 15 anos de psicanálise falada, freudiana. Foi importante, precisava ser aceita socialmente. Não podia ser um bicho, aquele cachorro que voltou do sítio, que não tosaram nem deram banho (risos) — brinca. —Senti necessidade de corporificar os pensamentos. Não adianta fazer terapia e tratar meu corpo como lixo. Falo de alimentação, sono, carinho, cuidado, de estar presente. Desde que comecei a olhar corpo e mente se manifestando juntos, passei a vibrar mais, a estar inteira.

Essa investigação trouxe o que ela chama de “um banho de consciência”:

— Tem uma galera que fuma um ou cheira para chegar nesse lugar. Não quero morrer cedo. Nada contra drogas ou a quem recorre à Ayahuasca, mas não acredito que meu corpo vá sobreviver a anos disso. Então, achei outro atalho. Mais difícil, trabalhoso...

O processo desaguou também num amor-próprio que não permite mais bullyings ou relações tóxicas:

— Não tolero mais ser maltratada. Antes, segurava ou transformava em raiva — diz ela. — O espetáculo fala da distorção da autoimagem, da falta de contorno do corpo do homem contemporâneo. Do gênero, da sexualidade, das relações, da ética, do quando se começa e termina de trabalhar. Ninguém mais sabe responder a isso.

Bissexual ou pansexual
Ela mesma se nega a ser enquadrada na binariedade de gênero. No palco, faz questão de usar uma maquiagem que não é a que se espera de uma mulher (o rosto branco como um clown) e brinca com o exagero de um laço gigante.

— Meu corpo é peitão, bundão, tudo evidente. Mas não abraço a questão do feminino, não é interessante para mim como indivíduo ou artista. Falo bissexual, mas sou é pansexual. Sempre tive amiguinhos e amiguinhas trans. Meu desejo é aberto. Estou fazendo as pazes com ele. Por muito tempo, reprimi. Hoje, sei que sou um ser desejante. É importante entender que isso não é um problema. A gente está aqui para viver. Quem não está vivendo está triste.

Alice segue o papo filosófico cravando que “somos crianças hedonistas sem limites”. A começar por ela...

— Minha mãe sempre falou que um abraço é um limite. Aliás, era o único jeito que me dava limites (risos), através do afeto. Discordo que todos os limites têm que ser abraços, mas concordo que um abraço é um limite — analisa. — E esse show é assim: a gente olhando para isso. A psicanálise diz que o futuro de uma criança sem limite, sem contorno, é a doença mental. É que se torna um adulto doente.

"Freud é importantíssimo, né?"
A batalha para não adoecer é contínua para Alice Caymmi. E ela tem lutado diariamente para não sucumbir diante de certa decepção com a realidade.

— Vivo a desilusão social do país, política, emocional. Desilusão com o mundo. Virei meus 30 anos na pandemia. Se não estou desiludida, estou delirando. Mas, no palco, transformo minha desilusão num delírio bonito que faz as pessoas entenderem que sobrevivemos a um holocausto. Vou falar que está tudo bem? Não é do meu feitio — afirma.

Ela podia, sim, tentar ser mais “palatável” para, como diz, “vender mais”. Mas prefere a o papo reto:

— Sou da verdade cruel. A catarse da tragédia grega, que leva tudo às últimas consequências, é o que me faz feliz. Em vez de ficar indignada, falo da fúria, que é a raiva direcionada para a justiça.

Se mete o dedo na ferida, ela tem a quem puxar. É sobrinha de Nana Caymmi, com quem chegou a romper após a tia criticar seu trabalho publicamente. Águas passadas, garante.

— A gente conversou horrores. E ela fez o que sempre faz: fingiu que nada aconteceu. Disse: “Sou sua tia, te amo e estou aqui”. Respondi: “Eu também, e vai ficar tudo bem” — conta. — Não tem como ficar de mal com uma pessoa que está de mal com o mundo.

A sobrinha procurou entender as razões da tia dentro da história familiar e acabou enxergando paralelos com a própria história.

— Sei de onde ela vem, que, às vezes, é um lugar de tristeza e de não adaptação. Vim da mesma fonte maluca. É uma mulher dentro desse contexto, sofreu muito mais opressão que eu. Teve uns 12 casamentos, três filhos, um sofreu um acidente... Não é uma vida comum nem fácil. Inclusive, um dos meus sonhos é contar a história dela no cinema, a dela e a da minha avó, Stella. Acho importante que saibam de onde vêm Nana e suas questões.

Cancelamento
Alice lembra que o modo “sem filtro” de Nana é pré-rede social.

— Os millennials não a conheciam como ela é. Quando isso aconteceu, foi automaticamente cancelada, o modus operandi de hoje — analisa. — Lembra quando saiu aquela entrevista bombástica em que ela bateu nos grandões da MPB? Eles responderam: “Ah, é a Nana!” Estão acostumados. Ela mostrava o peito, ficava nua, sempre foi contracultura. Canta bolero, mas fala barbaridades nos shows (risos). A essência é punk, é contra o sistema. Essa grosseria e violência é uma reação à opressão.

Sobre os recentes problemas de saúde de Nana, Alice consultou o tarô e conta o que viu nas cartas:

— Ela precisou tomar esses sustos, senão, não se cuida. Mas sou bruxa e sei que ela não vai embora agora.
O que ela também já sabe é que já deu de virar as costas para a história musical de sua família. Se fez questão de deixar para trás o peso do sobrenome para construir a própria trajetória, agora, ela acolhe suas raízes. Tanto que planeja, para 2025, um trabalho que vai abraçar sua ancestralidade e assumir seu lugar entre os Caymmi.

— Não queria deitar na minha herança, deixá-la me engolir. Uma herança pode te matar. É sedutor, mas nos esmaga. Dorival é muito grande, não tem como competir. Estou sendo valorizada, vivendo da minha arte sem mexer com ele. Precisei cortar relações, renascer. Agora, estou me entendendo dentro disso.

Pai, tios, maternidade
Viver do passado não é algo que interessa à cantora.

— Dorival é homem, e de um outro tempo. Sou mulher, e uma artista de outro estilo. Como comparar? Estou olhando para isso tudo e entendendo como fazer uma obra em cima do legado do meu avô, Talvez transcenda para os outros Caymmi. Tem muita coisa bonita. Meu pai e meus tios têm muita identidade. E parecem ter 17 anos. A mente não envelheceu, são ativos, interessantes e poderosos.

Falando em passagem do tempo, há também o tema da maturidade para a cantora.

— Aíí é que o Freud é importantíssimo, né? Ele diz que, se não mata pai e mãe, não se chega nesse lugar — observa ela, que pensa em ter filhos. — Mas vou esperar o máximo para me entender. Quero causar o menos dano possível numa criança (risos).