opinião

A corte eleitoral de Pernambuco e o sistema eletrônico de votação e apuração

Narram os registros históricos que a ideia de que o Poder Judiciário deveria ser o responsável pela maior parte dos trabalhos eleitorais começou a ser pensada no império e ganhou força no século XX.

Na década de 1930, existia no Brasil uma aspiração geral em retirar o processo eleitoral do arbítrio dos governos e da influência conspurcadora do caciquismo local, tendo como princípio a moralização do sistema eleitoral e se fazia necessária a instituição de um órgão do Judiciário encarregado tanto do alistamento eleitoral quanto de todas as funções judicantes e administrativas do processo eleitoral tendo como objetivo acompanhar a evolução do controle desse processo, já experimentado por outros povos civilizados.

Assim, a Justiça Eleitoral foi instituída para o fim de realizar a VERDADE ELEITORAL, a verdade das urnas. Esta é a sua missão básica fundamental, como condição da democracia. Criada através do decreto nº 21.076 de 24.02.1932, que também instituiu o primeiro Código Eleitoral com a adição do voto feminino, o voto secreto e o sistema de representação proporcional e no ano seguinte realizou a primeira eleição para a escolha da Assembleia Nacional Constituinte. 

Já com esse decreto foi criada uma magistratura especial, dividida em três instâncias a saber: Um Tribunal Superior, um Tribunal Regional em cada estado e juízes eleitorais singulares em cada comarca. Foi ainda instituída a rotatividade dos membros dos Tribunais, não podendo os mesmos servirem por mais de dois biênios consecutivos.

A constituição de 1934 inseriu a Justiça Eleitoral como órgão do Poder Judiciário. Com o golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, instalou- se a ditadura no Brasil, quando foram dissolvidos o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, e extintos os partidos políticos e a Justiça Eleitoral. 

Com a redemocratização do país em 1945 e a urgente necessidade de realização de eleições para Presidente da República, Senadores e Deputados foi reinstituída a Justiça eleitoral e regulamentado o processo eleitoral.

A arquitetura da Justiça eleitoral varia de país para país. Em alguns as eleições são realizadas pelo próprio Poder Executivo Nacional (como na Finlândia e Argentina), ou municipal fiscalizada pelo Poder Judiciário (como nos Estados Unidos, França e Alemanha) mas em alguns países (como Chile e Uruguay) a administração das eleições fica a cargo de órgãos autônomos, não integrantes de nenhum dos poderes.

Em 1982, quando ingressei na magistratura com mais 10 colegas de concurso, enfrentamos as nossas primeiras eleições como juízes eleitorais. Na época, em eleição bastante disputada foi eleito o professor Roberto Magalhães para o cargo de Governador do estado.

A partir de então e durante todo o meu tempo servindo no interior e capital participei como juiz eleitoral, na qualidade de titular ou de convocado apenas para as eleições (VOTAÇÃO E APURAÇÃO).
Era um sistema arcaico de votação por cédulas e apuração manual por mesas compostas por cidadãos meticulosamente escolhidos por suas virtudes de honestidade e isenção, mas que sofriam de uma interminável luta pelo aproveitamento do voto por adivinhação da vontade ou intenção do eleitor. Era HORRÍVEL!

Naquela época havia a LOTERIA ESPORTIVA, a da zebrinha, e eu pensava com meus botões porque não se instituía a votação usando cartões tais como as apostas da loteria esportiva. Seria tão mais fácil. Mas logo percebia que não havia vontade na evolução do sistema de votação e apuração. Eu sentia que a luta pela interpretação do voto era a que mais interessava e não se tinha como mudar ou fazer porque esse era o sistema adotado e que alimentava a esperança de obter resultados.

Jamais imaginei que chegássemos ao patamar de evolução que temos hoje em dia e que, naquela época, já muitos juízes se preocupavam em modificar aquele antigo sistema do voto manual.

Quando exerci a presidência do Tribunal de Justiça de Pernambuco o sistema de votação e apuração já era eletrônico mas tive o prazer de conhecer o des. Carlos Prudêncio, magistrado de carreira e presidente emérito do Tribunal de Santa Catarina e passei a tomar conhecimento de sua história e de sua luta para aperfeiçoar o sistema eleitoral. 

Tornei-me amigo dele e passei a fazer parte do Instituto de Magistrados Brasileiros por sua indicação que de logo em eleição ocorrida no Rio de Janeiro em 2021 me elegeu vice-presidente do IMB. A nossa amizade hoje é de frequência familiar. Ele mora em Brusque, Santa Catarina.
Esse magistrado tornou Santa Catarina no berço do voto eletrônico em nosso país e cabe aqui fazer um resumo da evolução vivenciada por ele nessa tentativa.

A história tem início no 1° turno das eleições presidenciais de 15/11/1989 em Brusque. Cidade do Vale do Itajaí, quando um microcomputador foi usado pela primeira vez para coletar os votos em uma seção eleitoral. A experiência foi organizada pelo des. Carlos Prudêncio, na época ainda juiz eleitoral da cidade, quando ninguém falava no emprego de tecnologia nas eleições e eram comuns os relatos de vícios em diversas etapas do processo eleitoral. Uma experiência anterior aconteceu com o mesmo em 1982 na comarca de Joaçaba, na totalização para acelerar o resultado das eleições.

O então juiz Prudêncio encontrou dificuldade para inserir a votação de forma automatizada em Brusque, principalmente por conta do desconhecimento e receios do TRE/SC com as tecnologias da época. Mas ele não desistiu, naquele tempo inclusive, poucas pessoas dispunham de equipamentos, somente alguns empresários. 

Com o irmão, Roberto Prudêncio, programador em Blumenau e dono de uma empresa de informática, criou um sistema que contou ainda com informações de um satélite para interligar as informações. Inicialmente o Tribunal Regional Eleitoral colocou empecilho e não autorizou. Fizeram muitos testes aprimorando o sistema e com a autorização de experiência do TRE/SC colocaram em teste em uma seção de Santa Catarina, no primeiro turno das eleições de 1989. 373 eleitores votaram pela primeira vez usando um computador em uma seção de votação.

Diz o des. Prudêncio que “era seu sonho encontrar uma forma eficiente e inquestionável para a votação e apuração das eleições e que servisse para todo o país”. Nessa experiência pioneira, os eleitores terminaram de votar e logo depois das 17 horas da eleição de 1989, conseguiram fazer a transmissão do computador onde votaram tornando assim a primeira eleição bem-sucedida, com experiência em uma urna eleitoral eletrônica, sem qualquer questionamento de partidos ou candidatos.

A notícia se espalhou e o Tribunal Eleitoral de Santa Catarina resistiu o quanto pôde, até que o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral mostrasse interesse e viesse a Brusque e ao sair, depois de conhecer o que lhe foi apresentado, disse ao Brasil que se tratava do maior invento na área eleitoral no mundo.

O fato teve grande repercussão com manchetes dos principais jornais do estado. O Diário Catarinense em 16 de novembro daquele ano escreveu que os eleitores “NÃO ENCONTRARAM DIFICULDADES PARA DIGITAR O NÚMERO DO CANDIDATO, NÃO CONSUMINDO MAIS DE 23 SEGUNDOS PARA VOTAR”. O programa aplicado também incluiu o voto branco e nulo.

A partir daí, Brusque passou a ser a Zona Eleitoral em modelo experimental e expandiu o sistema para as demais seções, em 1991 o próprio Tribunal eleitoral realizou o plebiscito para emancipação do distrito de Cocal do Sul do município de Urussanga, em 1994, no 2° turno o Tribunal usa o voto eletrônico para eleger cargo majoritário em cinco seções de Florianópolis e em 1995, o Tribunal Superior Eleitoral institui a Comissão de Reforma Eleitoral. 

No mesmo ano o Tribunal de Mato Grosso aprova e encaminha ao Tribunal Superior Eleitoral, um projeto para uso de urnas eletrônicas com equipamentos criados especialmente para a coleta e apuração de votos. Nesse ano ainda, 14 mil eleitores de XAXIM – Santa Catarina elegem prefeito com uso do voto eletrônico. Em 1996 o Tribunal Superior autorizou o uso de urnas eletrônicas para as cidades com mais de 200 mil eleitores, mantendo o projeto pioneiro onde Brusque também participou, como única exceção. 

Em 1998 as urnas eletrônicas são usadas nas eleições em cidades com mais de 40 mil eleitores e finalmente em 2000 o processo vira 100% informatizado. Passados 24 anos da primeira eleição totalmente informatizada, o Brasil avançou na confiabilidade do sistema. Atualmente, o processo conta com mais de 30 camadas de segurança que envolvem criptografia, auditorias, testes públicos, rede própria independente de internet.

O des. Prudêncio é considerado o inventor da urna eletrônica pela Assembleia Legislativa Catarinense e pela Câmara de Vereadores de Brusque, sendo reconhecido por instituições no Brasil com outorga de honrarias pelo feito e citado em solenidades de natureza eleitoral.

Todo esse relato histórico consta de matéria do Diário Catarinense editado em 16 de novembro de 1989. Talvez, poucas pessoas, ou quase ninguém tenha conhecimento desses fatos que engrandecem a Justiça Eleitoral como um todo, na exata ideia de que aquela antiga preocupação de 1930 e DESENHADA no Código Eleitoral de 1932, de criar um órgão autônomo vinculado ao Judiciário para moralizar as eleições, dando-lhe transparência, isenção, celeridade, garantia de igualdade e sobretudo CREDIBILIDADE e AUTORIDADE para a concretude do processo eleitoral em respeito aos eleitores, partidos e candidatos e com destaque para a cidadania como um todo.

No último final de semana tivemos eleições para Prefeitos e Vereadores de todo o estado. O Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco cumpriu com maestria todo o calendário do processo eleitoral até aqui, desde o registro de candidatos, fiscalização da propaganda, votação e apuração. Passamos agora para a fase seguinte de impugnações e prestações de contas.

O Brasil se orgulha do processo eleitoral e de suas instituições. A conquista brasileira de um sistema eleitoral eletrônico, idôneo e transparente se reflete no último ato (VOTAÇÃO E APURAÇÃO) com resultado final divulgado até as 20 horas do mesmo dia de forma INQUESTIONÁVEL.

Foi o que aconteceu.

É UM EXEMPLO PARA A DEMOCRACIA.

É um exemplo para o mundo.

Parabéns a todos que compõem a Justiça Eleitoral. Parabéns ao Brasil que instituiu um sistema célere e confiável, dando exemplos ao mundo civilizado.

Parabéns a quem lutou tanto por esse sonho, que parecia impossível.


* Desembargador, vice-presidente e corregedor regional do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco.


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