opinião

Crise de legalidade

O poder central brasileiro está cada vez mais disfuncional. Partidos e outros agentes fazem política, tentam atingir adversários e buscam proteger amigos pelas vias judicial e administrativa, que, não poucas vezes, a isso se permitem, exorbitam de seus limites, atropelam ritos e a própria competência, em prejuízo de pessoas naturais e jurídicas, bem como de sua própria credibilidade e de outros poderes e órgãos.

Recentemente, provocado pelo Executivo, o STF suspendeu as chamadas emendas de relator, pelas quais o Parlamento destinava verbas orçamentárias para as bases de cada um de seus integrantes, fazendo as vezes, de forma transversa, ao que cabe ao Executivo.

O Parlamento, por sua vez, pautou emendas constitucionais, restritivas aos poderes do STF, não para cumprir o dever de estabelecer regras para a melhoria dos serviços  daquele  Tribunal,  mas  como  maneira  de pressioná-lo  a  permitir  que  a  sistemática  das  tais emendas continuasse.

Há poucos dias, durante sessão noturna, que entrou pela madrugada, o Congresso se reuniu para votar a desoneração da folha de pagamento das empresas e aproveitou a “oportunidade” para aprovar a Lei 14.973/24, que autoriza o Executivo a promover uma espécie de confisco em contas-correntes privadas, esquecidas por seus titulares, bem como de depósitos judicias relativos a processos encerrados, que as partes não os foram sacar.

Por força dessa norma, o governo federal está “autorizado” a se apropriar de recursos de terceiros, para engordar o seu caixa e tentar “empurrar para debaixo do tapete” o rombo fiscal causado pelo uso indevido, perdulário e ineficiente do orçamento, gerido por ele (governo), que tributa em excesso, entrega pouco à sociedade e gasta mal o que arrecada.
 
O STJ, destinatário de recursos especiais e ordinários e de habeas corpus, derivados de ações envolvendo cidadãos comuns e empresas privadas, tem uma atuação errática e superficial na esmagadora maioria dos casos que lhe chegam, o que deixa as instâncias ordinárias, os jurisdicionados e a grande massa da advocacia (que atua longe do planalto e não tem acesso direto aos ministros), sem resposta convincente quanto a maior parte dos casos ali julgados e, o que é pior, desorientados sobre o que seria a correta interpretação da ordem jurídica infraconstitucional federal, cuja uniformização é a missão constitucional mais relevante daquele tribunal superior.
 
Em paralelo a tudo isso, a instabilidade e a insegurança jurídica que vêm de Brasília se espalham como precedentes pelo país inteiro, sujeitando, “a la carte”, qualquer pessoa do povo, a processos e procedimentos onde as garantias e os direitos individuais são desrespeitados, sob forma de ofensas ao devido processo legal e a ampla defesa, censura à liberdade de expressão, apreensão de bens, restrições ao trabalho e à propriedade, relativização dos contratos, bem como prisões e medidas cautelares que violam a presunção de inocência, posto que os seus efeitos são de verdadeiras antecipações de penas, que, como se sabe, não têm base legal nem constitucional.
 
Com a necessária ressalva às muitas autoridades cumpridoras de seus deveres, os fatos acima descritos, que não têm necessária conexão entre si, são aqui referidos para mostrar, com exemplos concretos, que o Estado brasileiro, em quase todas as suas faces, está completamente subvertido, transfigurado em uma máquina arbitrária e imprevisível, que não respeita as regras, serve a si mesma e é algoz do orçamento público, dos direitos e garantias individuais e da sociedade como um todo, a quem o poder deveria proteger e servir.

As pessoas em geral, a imprensa, os órgãos de classe, as entidades religiosas, as associações, as corporações públicas e demais setores da sociedade civil, precisam enxergar o dano perene que esse estado de coisas vem causando, a tudo e a todos, e parar de tratar isso como algo que estaria distante do cidadão comum, restrito às disputas de poder ou que seria próprio da política, da justiça e da democracia.

Devemos protestar quando o poder fiscalizatório, policial ou judicial do estado invade, à margem da lei, a esfera patrimonial e jurídica de alguém, mesmo em se tratando de quem não gostamos, discordamos, não conhecemos ou achamos que é criminoso.

Não podemos passar a mão na cabeça de autoridades que usam as leis, a política, o poder do estado e o orçamento público, para enriquecer ilicitamente, atacar inimigos e beneficiar amigos e parentes, como se de propriedades privadas e atributos pessoais se tratassem.

Pouco importa se somos pretos ou brancos, heteros ou gays, ricos ou pobres, patrões ou empregados, empresários ou servidores públicos, de direita, de centro ou de esquerda, é fundamental percebermos que as circunstâncias institucionais doentias em que estamos inseridos afetam o conjunto social inteiro, criando precedentes e causando prejuízos que podem atingir (e estão atingindo) qualquer um, pois ninguém está a salvo da desordem jurídica e da mão pesada de um estado arbitrário, nem pode viver com prosperidade e segurança, livre e em paz, em um país onde as regras e o poder estão a mercê da ideologia, das escolhas, dos interesses pessoais e do autoritarismo de “poderosos de plantão”.

Somos um só povo e um só país, precisamos despertar.


* Sócio do GCTMA Advogados, Procurador aposentado do Estado de Pernambuco, Conselheiro de Administração/IBGC.

___
Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião do jornal. Os textos para este espaço devem ser enviados para o e-mail cartas@folhape.com.br e passam por uma curadoria para possível publicação.