Dança

No Met, Deborah Colker comprova concepção de movimentos que transcende dança e ópera

Primeira récita de "Ainadamar" enfrenta percalços sonoros, mas encanta Nova York pela ousadia de movimentos dos cantores e cenografia ágil

Angel Blue como Margarita Xirgu em cena de "Ainadamar" - Divulgação/Marty Sohl/Met Opera

A estreia de Deborah Colker na direção de uma produção do Metropolitan Opera, em Nova York, foi recebida com casa cheia e aplausos de seis minutos e meio ao cair do pano, na última terça.

Haverá sem dúvida debates sobre a legitimidade de “Ainadamar” (composta pelo argentino Osvaldo Golijov, sobre libreto do americano David Henry Hwang) no principal palco lírico dos EUA, uma vez que a obra têm características musicais que desafiam muito do gosto pelo qual o público (e os doadores milionários) da casa são especialmente famosos.

Mas a encenação de Colker — uma das maiores apostas de Peter Gelb, diretor geral do Met, para trazer frescor e vivacidade ao palco lírico do Lincoln Center — provou que o raciocínio cênico típico de seus espetáculos de dança também funciona com ópera, um animal conhecido por ser muito mais lento em seus movimentos.

O libreto de Hwang, de forte comentário antifascista, explica que “Ainadamar” significa “fonte de lágrimas”, e o maior trunfo da produção foi tornar a ópera o mais líquida possível.

Para isso, a cenografia ágil do inglês Jon Bausor (também responsável pelos belos figurinos) desprezou a ideia de bastidores de um teatro uruguaio e criou uma câmara de memórias por meio de uma grande cortina circular de um branco translúcido, que envolve o centro do palco e recebe projeções do israelense Tal Rosner.

É por ela que a personagem da atriz Margarita Xirgù (Angel Blue, soprano americana vencedora do Grammy) conta a sua aluna Nuria (Elena Villalón, também soprano e americana) a memória trágica de sua amizade com o poeta Federico García Lorca (Daniela Mack, mezzo argentina, em extraordinária atuação cênica), que foi perseguido e executado pela Falange fascista à época da Guerra Civil Espanhola, nos anos 1930, por ser considerado subversivo e por sua homossexualidade.

O espetáculo se inicia com forte sensação de teatro musical, com bailarinas e cantoras em sincronia e forte gestual de braços “atacando” a plateia.

Aos poucos, a melancolia de Xirgù e a compaixão de Nuria começam a se destacar dentro do coro de inspiração flamenca, escavando a profundidade emocional da cena e se reconhecendo como drama.

Dentro da câmara, quatro tablados altos passam a se reconfigurar, remetendo a experiências anteriores de Colker como em “Cruel” e até mesmo na recente “Sagração”.

Num dos momentos mais marcantes do espetáculo, os tablados que serviram antes como mesas de bar — e, na vertical, como pedestais de quatro estátuas viva — são amontoados junto com 18 longas varas no centro da câmara, formando uma barricada irregular, em que se duas pequenas “rampas” se cruzam.

Por essas rampas, Colker ousa ao fazer Blue (uma mulher de 1,85m e compleição robusta) caminhar e cantar descalça até pousar no chão, numa cena de risco real que resultou em leveza de Cirque du Soleil, apoiada por um par de bailarinos.

Também é ali que o cantor flamenco Alberto Tejada, microfonado, dominará a cena como o militar Ramón Ruiz Alonso, perseguidor de Lorca.

Como num time de futebol moderno, em que atacantes ajudam a recuperar a bola e zagueiros são convidados a construir o ataque, os cantores são intensamente convocados a participar da ação, inclusive nos números de dança.

Todo esse dinamismo físico, aliado às reconfigurações magistrais dos tablados — com o obrigatório destaque final da cena em dupla cruz da execução de Lorca, realçada pela iluminação de Paul Keogan — se traduziu num espetáculo de coesão dramática e contínua força poética e política, driblando a sensação de epílogo prolixo que a ópera de Golijov já revelara em outras produções, como as de São Paulo em 2015 e 2023.

Se “Ainadamar” apresentou em sua estreia cenas dignas de ocuparem uma sala do Museum of Modern Art, o ponto de preocupação desta montagem reside na falta de equilíbrio entre o som orgânico e o amplificado.

Numa partitura que utiliza efeitos pré-gravados e texturas, as vozes de Blue e Tejada se viram algumas vezes encobertas pela orquestra do Met, num teatro que, como tantos outros, também é pouco acostumado a esse tipo de recurso eletrônico nisso que chamamos ópera.

A seu favor, o regente peruano Miguel Harth-Bedoya, que também estreava no pódio do Met, conduziu o conjunto com bastante domínio da rítmica hispano-americana.

No todo, a “Ainadamar” de Deborah Colker chegou a Nova York como um espetáculo maduro, fermentado antes em Glasgow, Detroit e Cardiff, que marca a entrada da criadora carioca no jogo da ópera internacional.

Com a confirmação da coreógrafa na direção de “O Último Sonho de Frida e Diego” (da americana Gabriela Lena Frank) na próxima temporada do Met, o que surge no horizonte é a possibilidade histórica de uma brasileira ocupar um papel muito influente na transformação de um repertório (que se renova a conta-gotas para sobreviver) e nas discussões sobre o modo de encená-lo, com abundância de movimento e maior exigência dos cantores.

Esse horizonte, no entanto, dependerá também de escolhas que a própria diretora terá de enfrentar no futuro, como a de topar se submeter às comparações naturais de quando se encenam os títulos mais tradicionais de Mozart, Verdi, Wagner e Puccini.

Por ora, de fato, há muito mais que seis minutos e meio para reconhecer um novo orgulho lírico brasileiro e seu triunfo em águas pouco navegadas: depois das nove récitas no Met, “Ainadamar” terá sua próxima parada na outra margem dos EUA, na Ópera de Los Angeles, em que Gabriella Reyes ocupará o lugar de Angel Blue.