PUNIÇÃO

Itália criminaliza barriga de aluguel no exterior, em revés para casais inférteis e LGBTQIA+

Nova lei punirá italianos que busquem o procedimento até em países onde ele é permitido, incluindo a barriga de aluguel num seleto grupo de crimes que transcende fronteiras, como terrorismo e genocídio

Bandeira da Itália - Pixabay/Reprodução

A Itália aprovou uma lei nesta quarta-feira que criminaliza a busca de barriga de aluguel no exterior, uma medida que, segundo o governo de extrema direita do país, protegeria a dignidade das mulheres.

Críticos, por outro lado, veem a medida como mais uma forma de repressão da primeira-ministra Giorgia Meloni às famílias LGBTQIA+, já que a lei tornará praticamente impossível que pais e mães homossexuais tenham filhos.

A barriga de aluguel já é ilegal na Itália. No entanto, o governo de Meloni prometeu ampliar a proibição para punir italianos que buscassem o procedimento em países onde ela é legal, como os Estados Unidos. Dessa forma, a prática passa a integrar um seleto grupo de crimes que transcende fronteiras, como terrorismo e genocídio.

Analistas avaliam a legislação como uma forma de Meloni afirmar suas credenciais conservadoras e apelar para sua base política, que se opõe desproporcionalmente à barriga de aluguel e à adoção por casais homossexuais.

A Itália, sede do Vaticano, já está em uma posição inferior na Europa quando se trata de liberdades civis, e os críticos italianos dizem que, ao impor mais restrições às famílias homossexuais, Meloni adota uma linha particularmente dura.

Mesmo antes de ser aprovada, a lei já havia deixado as famílias homossexuais em pânico. Agora, elas se sentem ainda mais em perigo, uma vez que, de acordo com a nova legislação, podem estar sujeitas a penas de prisão e multas elevadas se buscarem uma barriga de aluguel no exterior.

— É como um caminhão batendo na nossa cara — disse Pierre Molena, que, com seu parceiro, embarcou no longo caminho de buscar uma família por meio da barriga de aluguel no exterior. — Estamos preocupados com nosso futuro e o de nossos filhos.

Embora alguns senadores tenham rejeitado nesta quarta-feira as afirmações de que a lei era homofóbica ou visava especificamente a comunidade LGBTQIA+, a deputada Carolina Varchi, que apresentou o projeto, escreveu no Facebook que, com a legislação, seu partido estava trabalhando contra a “ideologia” da comunidade LGBTQIA+.

“Viva as crianças e seu direito, que é uma prioridade, de ter um pai e uma mãe”, disse Domenica Spinelli, senadora do partido Irmãos da Itália, de Meloni, pouco antes de o Senado da Itália aprovar o projeto de lei, com 84 votos a favor e 58 contra.

Meloni também expressou posições semelhantes. A premier, que tem suas raízes políticas em um partido pós-fascista, surpreendeu a muitos desde que assumiu o cargo ao se alinhar com o Ocidente em questões importantes, como a economia e o apoio à Ucrânia.

Especialistas discordam da medida
Mas especialistas dizem que ela tomou medidas sutis em questões culturais, como aborto e direitos da comunidade LGBTQIA+, para atrair sua base conservadora.

Para os críticos, isso foi particularmente alarmante, pois a Itália já estava atrás da maioria dos países europeus em termos de direitos da população LGBTQIA+ antes de o governo de Meloni assumir o poder. Juntamente com a Hungria e a República Tcheca, a Itália estava entre os poucos países da União Europeia que não reconheciam o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Desde que assumiu o poder, seu governo recorreu de uma decisão judicial que permitiu que adultos fossem identificados como “genitor” na carteira de identidade de seus filhos, em vez de “mãe” ou “pai”.

Ela também pediu às autoridades locais que apliquem vigorosamente uma decisão judicial que impediu algumas cidades de registrarem crianças nascidas de barriga de aluguel no exterior como tendo dois pais.

Cidades que costumavam emitir tais certidões, como Milão, pararam de fazê-lo, mas a diretriz também teve o efeito cascata de incentivar vários promotores italianos a revisar as certidões de nascimento de crianças nascidas de casais de lésbicas. Dezenas de mães tiveram seus nomes removidos das certidões de nascimento de seus filhos.

No que diz respeito à barriga de aluguel, a Igreja Católica Romana, juntamente com muitas feministas, se opõe a ela, que é proibida em outros países europeus. Em alguns, como o Reino Unido e a Grécia, ela é legal sob certas condições.

Mas a lei aprovada nesta quarta-feira na Itália é tão abrangente que não ficou claro se ela poderia resistir a contestações legais.

No ano passado: Mães LGBTQIA+ são removidas de certidões de nascimento na Itália

Em teoria, qualquer pessoa pode denunciar uma família suspeita de ter tido um filho por meio de barriga de aluguel, abrindo caminho para um possível processo criminal.

Entretanto, especialistas dizem que qualquer julgamento resultante poderia desencadear desafios constitucionais. Além disso, a Itália enfrentaria a perspectiva de processar pessoas por crimes cometidos em um país onde suas ações eram legais, criando tensões diplomáticas.

A lei também visa um número relativamente pequeno de famílias em um país que já está lutando com uma baixa taxa de natalidade. Acredita-se que a maioria dos casais italianos que recorrem à barriga de aluguel seja heterossexual, e eles também podem ser afetados negativamente pela lei, dizem os especialistas no assunto.

Mas como casais homossexuais precisam de uma terceira pessoa para ter filhos, muitos acham que a lei os deixa especialmente vulneráveis ao escrutínio. Além disso, somente casais heterossexuais podem adotar na Itália, o que significa que casais LGBTQIA+ italianos têm poucas opções para formar uma família.

Molena criticou a legislação por não diferenciar a barriga de aluguel entre mulheres mais pobres, que podem ser exploradas pela prática, e mulheres em lugares como o Canadá, que se voluntariam para carregar um bebê sem buscar compensação.

Para os legisladores conservadores, no entanto, a barriga de aluguel explora todas as mulheres. Nesta quarta-feira, eles também argumentaram que a nova lei poria fim à hipocrisia da atual situação na Itália, onde casais podem facilmente contornar a proibição da barriga de aluguel buscando-a no exterior.

A senadora Elena Murelli, membro do partido anti-imigração Liga, chamou a barriga de aluguel de uma forma de “comércio de crianças” e acrescentou que “não se pode comprar crianças no supermercado”.

Já deputados de esquerda defenderam que a barriga de aluguel deveria ser considerada uma solução médica para a infertilidade e que, em um país onde os casais homossexuais não podem adotar, a lei provavelmente impediria esses casais de terem filhos.

A legislação também estigmatiza as muitas crianças nascidas de barriga de aluguel que já vivem na Itália, disseram membros da oposição.

— Parece que vocês não percebem que essas pessoas já existem — disse Alessandra Maiorino, membro do Movimento Cinco Estrelas, antiestablishment da Itália.