ELEIÇÕES 2024

Disfarces e relatórios de 'convertidos': atores contratados para espalhar fake news pelas ruas

Investigação da PF aponta que 11 integrantes de um grupo chamado 'Teatro Invisível' difamavam adversários políticos em lugares públicos

Polícia Federal - Divulgação/Polícia Federal

Nada de redes sociais. Nem cortes de vídeos compartilhados pelo WhatsApp. "A rua é o que define a campanha", dizia um integrante do "Teatro Invisível", grupo de atores contratados nas eleições municipais para espalhar notícias falsas contra um candidato. Essa encenação disfarçada ocorria em um ponto de ônibus, numa praça ou num mercado abarrotado de gente.

O esquema foi denunciado por um político prejudicado pela trama e foi comprovado pela Polícia Federal após colocar agentes à paisana para seguir os passos dos suspeitos.

Em setembro, quatro pessoas foram presas em uma operação. No início deste mês, 11 investigados se tornaram réus na Justiça Eleitoral pela prática dos crimes de divulgação de fatos inverídicos durante a campanha, calúnia, difamação eleitoral e associação criminosa. Os envolvidos negam as acusações.

A investigação aponta que o grupo de atores contratados adotava “trajes e até dicções locais” para se camuflar entre os 440.962 habitantes do município de São João de Meriti, a 29 quilômetros do Rio de Janeiro (RJ).

A estratégia de abordagens de eleitores era organizada por bairros, com uma análise dos lugares onde seria possível atrair maior atenção das pessoas nas ruas. As encenações discretas eram treinadas e seguiam um roteiro pré-estabelecido para falar mal de um candidato e bem de outro.

Ao final das conversas com eleitores, era feita uma avaliação pelos atores com contagem de votos convertidos a favor do candidato que defendiam. Dependendo do sucesso da abordagem, a atuação cênica era classificada em planilhas como positiva ou negativa.

A expressão "Teatro Invisível", que batizou a operação da PF, foi usada pelos próprios investigados. É uma referência à prática de encenação em um espaço público sem que os espectadores saibam que se trata de uma peça. O esquema, segundo a investigação, ocorreu em ao menos 13 municípios, todos no interior do estado do Rio de Janeiro, ao longo de duas eleições municipais, em 2016 e 2024.

'Bota pra fofoca'
A atuação da trupe fica evidente em mensagens trocadas entre os suspeitos em grupos de WhatsApp nomeados como "Equipe Teatro Invisível 2024" e "Teatro/Coordenação”.

Os diálogos foram obtidos pelos investigadores. Uma delas mostra como o grupo fabricou e espalhou uma notícia falsa sobre uma conexão inexistente entre o candidato visto como opositor, Léo Vieira (Republicanos), e o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 2018.

Após enviar um print manipulado, um dos investigados orientou como difundir a fake news boca a boca nas ruas: "Dá uma lida nessa notícia aí e bota pra fofoca".

Em outro diálogo encontrado pela PF, uma das integrantes da equipe fez uma análise sobre a distribuição da localização dos atores nos bairros. "Essa área não tem muita movimentação", afirmou. "Quando é no Centro, a gente consegue um número melhor", acrescentou. Os deslocamentos dos artistas eram monitorados em um mapa com anotações em post-its coloridos, apreendido pela PF.

Antes de saírem às ruas, os artistas recebiam instruções claras sobre o que comentar com os eleitores. Numa delas, deveriam dizer que o candidato da oposição “fala só para ganhar voto, mas não faz nada”, “fala de segurança, mas é miliciano” e "não trouxe nada para a cidade como deputado”.

Por outro lado, segundo o roteiro, o político apoiado pelos atores “cuidará bem da cidade”, “pode até roubar, mas faz” e é atacado “por ser do mesmo partido do Bolsonaro”.

Eleitores convertidos
Ao final do expediente, os atores deveriam produzir um relatório contando qual foi o número de pessoas abordadas e de “eleitores convertidos”.

Em um desses registros, descobertos pela PF, um artista diz que o candidato adversário “preferiu contratar (funcionários) fantasmas para se eleger ao invés de ajudar a população” — e que, ao final da sua atuação, conseguiu “fazer a conversão de pensamento e desistência do voto”.

Após enviar os relatórios, os atores tinham que preencher planilhas sobre o desempenho de cada dupla nas ruas, registrando o número de pessoas abordadas, quem votaria em cada candidato e quais foram "convencidas" pela encenação. Em caso de metas alcançadas, havia pagamento de bônus.

O valor recebido por ator, segundo um documento encontrado pela PF com um dos investigados, podia chegar a R$ 2,5 mil, com mais de R$ 2,2 mil de ajuda de custo para alimentação (café da manhã, almoço e jantar), transporte e outros gastos durante a abordagem.

Já o coordenador dos artistas receberia R$ 5 mil. Com isso, um pacote de seis integrantes do grupo, junto com o supervisor, ficaria por R$ 33,2 mil por mês. O preço final poderia variar dependendo da cidade de atuação.

A investigação não aponta a origem dos recursos utilizados para financiar as encenações. A empresa de um dos réus recebeu R$ 406 mil da campanha do deputado estadual Valdecy da Saúde (PL) para fornecer materiais impressos, como bandeiras, adesivos e santinhos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Em nota, o candidato favorecido pelas encenações afirmou que "não figura como indiciado ou envolvido nos autos do processo que apura prática de crimes eleitorais" e que está "à disposição da Justiça para prestar qualquer esclarecimento".

Valdecy ficou em segundo lugar nas eleições de São João de Meriti, com 33,37% dos votos válidos. O também deputado estadual Léo Vieira (Republicanos), que foi atacado nas ruas pelo "Teatro Invisível" e denunciou o esquema para a PF, foi eleito prefeito em primeiro turno, com 50,39%.