Órgãos infectados: Veja as falhas de controle interno no laboratório investigado
Central de Transplantes anexou relatório em branco em processo de pagamento do PCS Lab Saleme
Em meio a suspeitas de erro na testagem de doadores de órgão, há 15 dias equipes da Vigilância Sanitária estadual e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foram a filial do PCS Lab Saleme que funcionava no Instituto estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (Iecac), no Humaitá, Zona Sul do Rio.
Foi na unidade que os falsos negativos para o vírus HIV foram feitos e seis pacientes que receberam os órgãos acabaram contaminados, algo inédito no país. Na inspeção, foram encontradas 39 irregularidades e o local foi fechado.
No entanto, documentos obtidos pelo Globo mostram uma falha da fiscalização do próprio governo estadual já que dias antes o laboratório “gabaritou” a avaliação interna do hospital. Nesta segunda-feira, toda a diretoria da Fundação Saúde, responsável pela contratação, entregou os cargos.
A fiscalização da Vigilância
Os fiscais foram ao Iecac na tarde de 4 de outubro verificar quais eram as condições que o laboratório funcionava no 1º andar do Instituto, já como parte da investigação que apura o que pode ter levado aos erros. Naquela tarde ninguém se apresentou como responsável técnico pelo local, que também não tinha as licenças para funcionar no hospital.
De acordo com o relatório de inspeção, foram encontrados amostras com tubo “embalados no papel da solicitação médica, sem vedação adequada ou sem tampa de vedação, permitindo o extravasamento do sangue coletado”.
O documento ainda afirma que havia, no laboratório, amostras sem identificação e outras armazenadas em caixas de papelão. Os fiscais ainda relataram que encontraram ambientes sujos, com presença de insetos mortos e formigas em todas as bancadas.
Consta no relatório que também não foram apresentados pelos funcionários documentos de manutenção de equipamentos usados nos exames e a etiqueta de manutenção preventiva, colada no equipamento, estava vencida há mais de quatro meses.
Mas dois dias antes da fiscalização da Vigilância, o coordenador do serviço de Patologia Clínica do hospital deu a avaliação máxima ao PCS Lab Saleme ao preencher o Relatório de Avaliação do Serviço de Laboratório. Ele também é um dos fiscais do contrato na unidade.
O documento é assinado também por outras duas pessoas: a diretora administrativa de Recursos Humanos e pelo assessor de Planejamento. O relatório faz parte da aprovação do pagamento mensal do laboratório, que recebe da Fundação Saúde pelos exames feitos. Neste processo em específico, a empresa cobra quase R$ 150 mil de testes feitos a pacientes do Instituto de Cardiologia.
Entre os itens que o laboratório ganhou o aval está que existe registro do controle de qualidade interno e externo e que os equipamentos no local atendem a demanda. Cada item tem um valor em pontos, e para o coordenador de Patologia, naquele mês o laboratório tirou 10.
Em caso de desconto na pontuação, há um campo para indicar o que motivou o não cumprimento daquele item. O documento, no entanto, não cita nenhum dos problemas encontrados no local dois dias depois pela fiscalização.
O laboratório gabaritou a avaliação em outros meses, como em junho, dias após um dos exames atestarem erroneamente que um paciente com HIV não tinha o vírus.
Relatório em branco
Uma das 11 unidades atendidas pelo Lab Saleme era a Central de Transplantes do Rio. Por não ser uma unidade de saúde, os exames de possíveis doadores eram levados diariamente ao Instituto do Coração e feitos pelo laboratório.
Apesar dos testes serem no mesmo local, o pagamento à empresa era feito descentralizado, tendo a Central de Transplantes que realizar todo o trâmite administrativo igual aos outros hospitais.
Em processos encontrados pelo Globo, no entanto, o Relatório de Avaliação do Serviço de Laboratório foi anexado em branco. À Central de Transplantes em maio, o Labs Saleme realizou 3.173 exames e cobrou R$ 49 mil pelo serviço.
No mesmo dia que enviou a nota fiscal, o Relatório de Avaliação foi anexado sem nenhuma avaliação ou assinatura. Mesmo assim, seis dias depois o pagamento foi executado.
Outro indício de uma falha de controle interno da Fundação Saúde é que não foram elaborados relatórios de acompanhamento do contrato. Em cada unidade haviam três funcionários responsáveis em acompanhar e fiscalizar os serviços do laboratório.
No Instituto do Coração, quem presidia a Comissão de Fiscalização (CAF) do contrato era o biólogo Cid da Gama Torres. No entanto, nenhum documento da Comissão de Fiscalização (CAF) foi encontrado pelo Globo nos processos eletrônicos do governo estadual.
Questionada se a Comissão havia publicado algum parecer ao longo dos 10 meses em que a Labs Saleme atuou no Instituto do Coração, a secretaria estadual de Saúde não respondeu.
Na semana passada, a Polícia Civil desmembrou a investigação do caso. Um novo inquérito foi aberto para investigar como a PCS Labs Saleme foi contratada. O inquérito terá o apoio do Departamento-Geral de Combate à Corrupção, ao Crime Organizado e à Lavagem de Dinheiro.
O Ministério Público do Rio também tem investigações distintas. Além de apurar a questão criminal envolvendo a contaminação e a contratação, Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva da Saúde da Região Metropolitana apura, as condições sanitárias e possíveis irregularidades na Central de Transplantes do estado.
Procurada, a secretária de Saúde afirma que todas as questões apontadas pelo Globo “ serão alvo da sindicância, que está levantando documentos e depoimentos sobre este caso. A conclusão vai apontar as responsabilidades e ações administrativas a serem tomadas”.
Economia do laboratório
O mau controle de qualidade e dos equipamentos é uma das linhas de investigação da Polícia Civil. Presos na semana passada, os ex-funcionários da Lab Saleme Ivanilson Fernandes dos Santos e Jacqueline Iris Bacellar de Assis afirmam que havia uma ordem para reduzir o controle de qualidade para reduzir os gastos da empresa.
“ Essa economia deveria abranger todas as áreas da empresa, inclusive ao controle de qualidade dos reagentes usados para a realização do material fornecido pelos clientes e também por doadores de órgãos”, afirmou Jacqueline.
Em nota, o laboratório PCS Lab Saleme nega que tenha ordenado um menor controle de qualidade e que outros depoimentos confirmam isso. À polícia, os sócios Walter Vieira e Matheus Vieira disseram que os erros aconteceram por falhas de humanas de seus ex-funcionários, Ivanilson, Jacqueline e Cléber dos Santos.