Fenômeno com peça no teatro, Othon Bastos estreia nos cinemas e fala sobre vigor aos 91 anos
Estrela do monólogo de sucesso 'Não me entrego, não!', que ganhará temporada em SP em 2025, ator é um dos protagonistas de 'O voo do anjo'
Othon Bastos não gasta muito tempo esquentando o assento de sofás. Se está de folga e vê que não há uma nuvem no céu, o ator trata logo de sair de casa para tomar sol. Não é raro encontrá-lo em caminhadas — de “três, quatro, cinco, seis ou, sei lá, sete quilômetros”, como ele enumera — entre a orla dos bairros de Copacabana e Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
"Não disputo maratona nenhuma, né? Só se existisse uma maratona para velhíssimos!" gargalha o artista, aos 91 anos. "Faço apenas o que os médicos me pedem: andar e respirar. E assim vou indo, sem pressa: andando e andando... Se tenho que resolver algo na rua, também vou lá e faço, porque aí já conta como um exercício físico. Não me entrego ao ócio. Pelo contrário! Joguei o ócio no porão e não quero saber dele por enquanto. Prefiro deixar isso para depois"
Rosto, corpo e voz de um dos maiores fenômenos teatrais da atualidade no país, o artista até vislumbra um descanso “um pouquinho mais prolongado” a partir de 8 de dezembro, quando encerrará a temporada de sucesso da peça “Não me entrego, não!”, em cartaz desde junho no Teatro Vannucci, na Gávea. As férias, porém, serão curtas. É que o solo biográfico com dramaturgia e direção de Flávio Marinho — em que Othon repassa as próprias memórias — retornará aos palcos cariocas no início de janeiro. E mais. O espetáculo já tem data confirmada para estrear em São Paulo, a partir de maio de 2025. Antes disso, haverá também apresentações pontuais, em novembro, em Brasília e no Recife. O artista quer seguir assim, realizando o monólogo onde for possível e até que haja gente na plateia.
"Quem prorroga o espetáculo é o público. Não temos patrocinadores até hoje. Então, quem está nos patrocinando são os espectadores no boca a boca. Surpreendo-me muito com isso, porque jamais pensei que as pessoas tinham tanto interesse por mim" diz, reconhecendo que a ausência de apoio institucional é reflexo de uma situação mais abrangente no país. "Cultura não existe no Brasil. Cultura, por aqui, é “curtura”: é tão curta que não existe. É uma loucura isso"
Protagonismo no cinema
Com o sucesso recente no teatro, Othon tem recebido alguns convites para trabalhos no cinema. Por ora, ele quer se dedicar por inteiro à peça (“Não acho bom fazer 20 coisas ao mesmo tempo”, justifica). O recém-lançado “O voo do anjo”, que chegou ontem às telonas do país, foi rodado no primeiro semestre deste ano.
O filme dirigido por Alberto Araújo acompanha a história de um homem (papel de Emílio Orciollo Neto) afetado pela perda da filha, vítima de um acidente, e que tem a vida radicalmente transformada após um encontro inspirador com um desconhecido, um professor de física aposentado (interpretado por Othon), de quem se torna um grande amigo.
"Há uma mensagem importante, nessa narrativa, sobre o poder do diálogo. Hoje em dia ninguém escuta ninguém! A luta da vida, para mim, é esta: ser uma pessoa compreensiva. Para cultivar afetos, é importante ouvir e entender as pessoas" destaca o ator, casado há quase seis décadas com a também atriz Martha Overbeck, de 86 anos. "A gente se dá muito bem só porque a gente se escuta muito. O que digo é mesmo verdade: é preciso amar e escutar"
O artista dá uma risadinha rouca quando ouve que esbanja vitalidade. Além dos cuidados básicos com o corpo (“Na minha idade, não dá para ficar sentado ou deitado o dia todo”, ele brinca), não há tanto segredo para tal vigor, como ele pondera.
Na infância, o baiano da pequena cidade de Tucano (BA) leu a reprodução de um poema da americana Emily Dickinson, numa edição da revista “Seleções”, e cristalizou na mente um dos versos: “Eu nasço contente todas as manhãs”. A frase é um mantra que ele repete praticamente todo dia.
"Essa é a imagem que sempre regeu a minha vida. Para viver, é preciso ter alegria. Sem isso, não se vive. E acho que nós, em geral, estamos ficando cada vez mais carrancudos, perdendo o dom de rir. Mas é a alegria que impulsiona a vida" assevera. "Sobre a minha vitalidade, bem... Vitalidade rima com vontade. E eu tenho vontade. É a vontade fazer um espetáculo. É a vontade de conversar. É a vontade de provocar as pessoas para que elas não percam a esperança. Isso a gente não deve deixar, jamais, que alguém tire da gente"
Intérprete de personagens marcantes na história do cinema, do teatro e da TV — entre os quais o cangaceiro Corisco, de “ Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha, e o sertanejo Paulo Honório, de “São Bernardo” (1972), de Leon Hirszman —, Othon se sente habitado por um sem-número de homens diversos. Todos os tipos para quem já deu vida povoam a pele do ator. Aliás, o ânimo com que encara o tempo presente (e sobretudo o futuro) também surge daí. A preservação minuciosa da memória — esta, sim, talvez a grande protagonista da peça “Não me entrego, não!” — é o que o impulsiona a continuar andando, andando, andando. Sem grandes pausas para a preguiça ou o ócio.
"Para ser um bom ator é necessário carregar uma multidão dentro de si. Tem-se que viver, mas mantendo a lembrança de tudo o que já foi feito. Sempre. Essa é a coisa mais importante na vida. Todos os personagens que interpretei estão dentro de mim, sentados à mesa com a minha alma" frisa. "E, olha, é imensa a satisfação que eu tenho de poder, aos 91 anos, fazer um espetáculo de mais ou menos 1h30, debruçando-me sobre as coisas pelas quais passei, mas nunca com rancor. Como faço tudo com alegria, sei que as pessoas também recebem esse sentimento. Fico muito feliz de ouvir o público me agradecendo por transmitir lucidez e esperança. Viver é mais importante do que a posteridade, entendeu?"