ÓPERA

Peter Gelb: "O passado não é sempre tão incrível quanto as pessoas pensam"

Diretor geral do Met Opera de Nova York fala sobre sua visão sobre o futuro do gênero e o trabalho da brasileira Deborah Colker em 'Ainadamar'

Peter Gelb, diretor geral do Met Opera - Divulgação

Num amplo escritório dentro do edifício do Metropolitan Opera, principal teatro lírico das Américas, Peter Gelb relembrou ao Globo sua época de executivo da Sony Classical, que durou até 2006. Chegou a gravar um álbum com a cantora Rosa Passos em parceria com Gilberto Gil. "Ele me escreveu recentemente falando de uma ópera, 'Amor azul' sobre mitologia hindu. Sou grande fã dele, e respondi que ia analisar."

Numa conversa de 50 minutos, Gelb, um dos principais executivos da ópera no mundo, falou de sua trajetória no teatro desde 2006, sua visão sobre o futuro do gênero músico-teatral, sua opção por Deborah Colker na produção de 'Ainadamar' e como pretende estabelecer o Met como uma das principais fábricas de produção de novas obras que rejuvenesçam o público, mantendo ainda um equilíbrio com a tradição que interessa ao público mais habitual.

Qual é o futuro da ópera?

Creio que a ópera precisa fazer muito para assegurar que terá um futuro. Quando assumi em 2006, o Met era visto como muito elitista e branco, fora do alcance de quem não estivesse num certo nível econômico, e eu sabia que o Met precisava de uma injeção de vitalidade. A ópera se apoiava basicamente num repertório clássico, como Verdi, Puccini, Wagner e alguns outros. Além disso, na segunda metade do século 20, a música clássica se afastou da melodia, com uma música atonal que estimulava o intelecto, mas não o coração — ou talvez até quisesse estimular o coração, mas não era o caso. O grande público rejeitou essa música moderna, enquanto outras formas de arte navegaram com sucesso, como o cinema, o teatro. Por isso, minha meta é combinar os clássicos atemporais em produções que os mantenham relevantes para públicos modernos, aliada a novas obras que contem as histórias de hoje, como uma fórmula para o futuro artístico e o sucesso de público.

O Met virou um território a ser conquistado por esses perfis de público. Vimos 'Florencia no Amazonas', recebida aos gritos de 'Viva a ópera em espanhol", e também histórias como "Fire shut up in my bones", de Terence Blanchard, que recebeu enorme público negro. Mas também há o turismo, e os brasileiros são a quarta nacionalidade em turistas na cidade. Você considera esses dados quando escolhe quem faz uma 'Ainadamar', por exemplo?

Tem menos a ver com marcar caixinhas e mais com recrutar os melhores talentos do mundo. Uma das razões foi, é claro, foi [o compositor argentino] Osvaldo Golijov. Ele tinha tido um bloqueio criativo que o impediu de entregar uma encomenda para nós, e parte do meu trabalho como diretor geral é ser uma espécie de agente de casamentos artísticos, então tentei conectá-lo com [o diretor e escritor] Anthony Minghella e [o cineasta] Guillermo del Toro. Eu já tinha quase desistido quando fui abordado pela Scottish Opera para esta coprodução, e o que Deborah Colker fez nessa obra, essa fusão de dança e canto, criando uma conexão fluida entre o mundo do canto lírico e com performers que podem cantar e dançar numa grande concatenação, era muito sedutora.

Entenda, o Met, desde 1883, é conhecido como a grande casa do canto, e eu não quero sacrificar isso. Por sorte, a maioria dos grandes cantores também está consciente de que o futuro depende também de novas obras. E a verdade é que o passado não é sempre tão incrível quanto as pessoas pensam. Li cartas em que Puccini reclamava do elenco de sua época, dizendo que Enrico Caruso era preguiçoso e que Geraldine Farrar estava cantando fora do tom. Não há dúvida de Caruso foi um dos maiores cantores de todos os tempos, mas hoje, tecnicamente, os cantores são melhores do que há 50 ou 100 anos, e também muito mais hábeis como atores. Angel Blue, por exemplo, está realmente incorporada ao movimento físico de "Ainadamar". Isso é chave para o sucesso de Deborah e certamente uma chave de sucesso para a ópera.

Seu mandato trouxe tecnologia com as produções em Live HD, voltadas para cinema e streaming. Neste ano, o Met também lançou um app que vende ingressos, e essas ferramentas também ajudam a entender o consumidor. O que você espera?

Sem invadir a privacidade das pessoas, precisamos maximizar nossos esforços de marketing. Quando o Met se mudou em 1966 para onde estamos hoje, todo o público de 3.800 pessoas vinha de assinaturas. Não era preciso pensar em marketing. Hoje, a situação é totalmente diferente:12% de nosso público é de assinantes, e os outros 88% são compradores avulsos. Precisamos entender urgentemente como tê-las de volta. Pra mim, tudo começa com o que você põe no palco, mas também passa pela experiência de vir ao Met. A média dos avulsos caiu de 65 para 40 e poucos, em parte porque os mais velhos já morreram, mas também porque temos atraído gente jovem que ama vir a uma casa de ópera, se veste para isso e tiram selfies na nossa escadaria, com as obras do nosso programa de artes visuais ao fundo.

Uma das coisas que parecem ter realmente funcionado são óperas baseadas em filmes de sucesso, como 'As horas' e 'Os últimos passos de um homem'. Mas a cantora Joyce DiDonato já disse que talvez estejam faltando comédias. Como você responde?

Temos no forno uma comédia baseada no filme de Ang Lee, "O banquete de casamento", que está quase pronta, com libreto de John Seamus e música do sino-americano Huang Rou. É uma história sobre como dois casais gays levam seus parentes a aceitarem seus casamentos. Do retorno da pandemia até o fim desta década, teremos apresentado ao menos 25 novas óperas, que é o maior pacote de lançamentos do Met em sua história.

Como é esse approach para criar essa quantidade de óperas?

Nunca impomos. Fazemos sugestões, os artistas fazem sugestões. Mas eles precisam sentir, porque é arte e porque eles levam anos criando suas próprias obras. Da encomenda de uma ópera até que ela suba ao palco, o processo leva de quatro a cinco anos.

Seu escritório demonstra um grande envolvimento no apoio à resistência ucraniana. Como foi essa tomada de posição e que impacto artístico isso vai trazer?

Dentre todos os conflitos internacionais da atualidade, o mais fácil de separar o que é certo e o que é errado é a luta da Ucrânia contra a invasão de Putin. Quando a invasão começou, eu estava em Moscou para o último ensaio geral de uma coprodução nossa com o Bolshoi. Quando voltei a Nova York, cancelei nossos laços com o Bolshoi e com qualquer organização apoiada por Putin. Com a Ópera da Polônia, ajudamos a criar a Ukrainian Freedom Orchestra, formada por músicos do país espalhados pela Europa. Foi ideia da minha mulher, Keri-Lynn Wilson, que é a regente da orquestra. Aliás, uma das óperas que encomendamos para 2026/27 se chama "As Mães de Kherson", baseada na realidade de mães corajosas que arriscaram suas vidas para resgatar crianças sequestradas pelos russos no começo do conflito. A música será do ucraniano Maxim Kolomyets, com libreto de George Brandt.

Então, o futuro da ópera é o de voltar a abordar também o que está ocorrendo hoje e eventualmente entrar na política? A própria 'Ainadamar' aborda o fascismo.

A ópera sempre foi política. Verdi escreveu óperas de alto teor político, e a ideia de ter óperas que lidam com questões da sociedade não é algo novo. É realmente algo que precisa continuar para que a ópera exista.

No passado você disse que a educação precisava ajudar as pessoas a se manterem abertas a ópera, ainda mais com a cultura do TikTok que reduz o tempo de atenção focada das pessoas. Você ainda acha isso possível?

Como falta educação para as artes nas escolas tanto nos EUA quanto em outras partes, a obrigação dos teatros de ópera como o Met é de criarem sua própria educação. Atualmente, 12 mil crianças de escolas locais vêm ao Met a cada temporada para assistirem aos ensaios, e seus professores ensinam sobre as óperas antes que elas nos visitem. Também trabalhamos com professores de fora de NY nas sessões de cinema. Ainda existe um lugar para a ópera, a despeito do tempo de atenção hoje ser bem menor. Afinal, não é preciso muito para convencer um adolescente a ficar num show da Taylor Swift por três horas, ou ver "Duna 2", que também tem três horas.