O mito do Sol: reflexões sobre um verão que nunca termina
Naquele verão de 2002, a madrugada já nascia prenhe de um calor insistente, como um prenúncio de que aquele ciclo, que deveria ser efêmero, se estenderia para além de sua natureza, flertando com a eternidade. O sol, outrora um arauto de promessas, um espelho da esperança tropical que acalentava o sonho de vida em cada coração, agora se impunha com uma intensidade tirânica. Homens e mulheres se entregavam à ilusão de que aquela luminosidade abundante era um direito inalienável – o direito ao calor, à claridade, à própria vida. Ninguém ousava questionar a força colossal do astro rei, tampouco sua permanência.
Com o passar do tempo, o calor, antes celebrado como um bálsamo, se tornava um jugo. Extrapolava seus limites, invadia espaços, exigia mais do que lhe era devido. Vozes discordantes, como sempre, se levantavam, questionando a onipresença do sol, insinuando a necessidade de um recuo, de uma alternância. Anjos rebeldes, talvez, ousaram desafiar a ordem estabelecida, clamando por um retorno à dança harmoniosa das estações, por uma contenção da força solar. Mas, como tantos que se atrevem a confrontar o fluxo natural das coisas, esses anjos foram abatidos, e com eles a esperança de um verão que se curvasse ao ciclo natural da vida. Restou a tentativa de aprisionar o sol, de conter sua fúria.
E por um tempo, o astro rei foi mantido em cativeiro, ainda que inconformado com a imposição de limites à sua natureza. As doze luas, guardiãs celestiais, pareciam vigiar seu fulgor, mantendo-o eclipsado, na sombra. Contudo, as sombras, ávidas por retomar o poder, logo espalharam o medo, sussurrando a ameaça de um inverno perpétuo, de um mundo sem luz. E assim, o calor antes temido, tornava-se objeto de desejo. Aqueles que antes ansiavam por dias amenos, agora imploravam pelo retorno do sol, temerosos da escuridão. Na iminência do frio, a luz, por mais opressora que fosse, se tornava um refúgio.
O jogo se tornava perverso. Vozes que alertavam sobre os perigos da tirania solar eram silenciadas, abafadas pelo temor da sombra. A nostalgia dos dias frescos, da luminosidade suave, era sufocada pela ameaça da escuridão. Os que ousavam questionar o poder do sol, apontando para os riscos de sua onipresença, eram vistos como inimigos da segurança, da estabilidade prometida pela eternidade do calor. E as sombras, manipulando o medo, se erguiam como anjos protetores, enquanto a população, cega, ignorava a ameaça que o próprio sol representava.
Mas eis que uma brisa suave começa a soprar. Pequenas comunidades, em lugares distantes, anunciam uma descoberta: tecnologias que permitem enxergar o sol sem os filtros e as distorções impostas. As sombras, inquietas, tentam em vão sufocar esse conhecimento, mas cada vez mais pessoas conseguem vislumbrar a verdadeira natureza do astro rei, livre das amarras e dos véus que lhe eram impostos.
E assim seguimos, sob um céu incandescente, cegos em nossas crenças, esperançosos de que a razão, como um vento brando e transformador, nos liberte da escuridão que se disfarça de luz. Que sejamos capazes de contemplar o céu em suas nuances, compreendendo que a claridade não é absoluta, que o equilíbrio entre luz e sombra é inerente à natureza do mundo. É um processo lento, mas como nos ensina a poesia, "tudo passa" – inclusive este sol implacável que, por ora, cega e aquece nossa fé.
Este ciclo aparentemente interminável talvez nos reserve algo além do jogo de poder entre luz e sombra. Que em meio ao calor sufocante que ainda nos envolve, floresça a consciência de que a verdadeira luz não precisa se impor, nem silenciar as vozes que clamam por equilíbrio. O brilho, afinal, não precisa cegar para iluminar.
Se há um aprendizado a ser extraído deste verão sem fim, que seja o de valorizar cada estação, cada brisa, cada sombra, pois são elas que nos permitem enxergar a realidade sem a tirania de um sol absoluto. Na multiplicidade de luzes, na troca sutil entre os ventos e as sombras, quem sabe, encontraremos o caminho para um novo amanhecer. E quando este verão finalmente se despedir, que nos reste a lembrança de que a claridade mais plena é aquela que nos permite ver, mas também descansar.
Advogado especialista em Transformação Digital e Direito Autoral.
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