BRASIL

Justiça Eleitoral adotou critérios divergentes ao lidar com inteligência artificial, aponta estudo

Análise de decisões mostrou diferentes abordagens com casos de deepfakes

Inteligência artificial - @joelmirbarbosa/Freepik

Uma análise de decisões de Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) sobre o uso de inteligência artificial (IA) nas eleições municipais apontou divergências nos critérios utilizados para decidir sobre a remoção ou não de conteúdos. No primeiro ano de uso massificado da tecnologia na disputa eleitoral, magistrados tiveram entendimentos diversos sobre a exigência de um potencial dano para considerar o uso irregular.

O estudo foi feito pelo Laboratório de Governança e Regulação de Inteligência Artificial (LIA), vinculado ao Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), e publicado na semana passada em uma nota técnica. Foram analisadas 56 decisões, sendo a maioria delas proferidas ainda na pré-campanha e o resto no primeiro turno — os dados foram coletados até 19 de setembro.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) editou, em fevereiro, uma resolução regulamentando o uso de inteligência artificial nas campanhas. Uma das principais regras foi a proibição de qualquer uso de deepfakes, como são chamados ou áudios ou vídeos manipulados para inventar situações. Outras utilizações de IA deveriam ser devidamente avisadas nos materiais de propaganda.

A análise das decisões, contudo, apontou pelo menos três linhas diferentes de abordagem. A primeira delas aceita a utilização de deepfakes em vídeos de teor político, desde que não haja pedido explícito de voto ou de não voto nem desinformação. A segunda considera que nenhum uso da técnica deve ser permitido em contexto eleitoral. E a terceira linha, uma espécie de meio-termo, considera que é preciso analisar o grau de manipulação e o contexto da propaganda, proibindo conteúdos com desinformação.

Um dos casos citados como exemplo da primeira abordagem foi a rejeição de uma ação apresentada pelo prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), contra um vídeo publicado pela então pré-candidata à prefeitura Tabata Amaral (PSB), que colocava o rosto de Nunes no corpo do personagem Ken, do filme Barbie.

A defesa de Tabata, na ocasião, alegou que a crítica era referente à atuação do prefeito na gestão municipal e não era direcionada à eleição, o que não configuraria propaganda antecipada. O TRE de São Paulo considerou que não houve “fins ilícitos” e que não ficou comprovado que a montagem usou deepfake para promover desinformação.

Já um exemplo da segunda linha, mais restritiva, foi a decisão de retirada de um vídeo no qual Gustavo Galassi (Republicanos), candidato a vice-prefeito de Uberlândia, aparecia ao lado de seu avô, ex-prefeito da cidade, já falecido. Havia um aviso de que a cena foi criada com IA, mas a Justiça Eleitoral entendeu que, por envolver deepfake, o conteúdo não poderia ser permitido.

Um exemplo da terceira abordagem foi uma decisão contra um vídeo manipulado para parecer que Lula Cabral, candidato a prefeito de Cabo de Santo Agostinho (PE), foi vaiado na Assembleia Legislativa do estado.

"Lacunas significativas"
Os pesquisadores do laboratório afirmam que, após analisar as decisões, "observou-se lacunas significativas, especialmente no que se refere à definição precisa e uniformizada dos conceitos de deep fake e desinformação". Eles argumentam que é preciso estabelecer "parâmetros robustos", para dar segurança jurídica.

"Urge, portanto, que se estabeleçam parâmetros robustos, capazes de distinguir claramente o que constitui desinformação e o que se enquadra no conceito de deep fake, a fim de permitir um tratamento mais eficaz do tema pelos tribunais, oferecendo segurança jurídica e coesão na aplicação da legislação eleitoral", diz o texto.

Um dos pontos a ser definido é se a Justiça Eleitoral só deveria agir quando houver um potencial de dano, como o risco de manipulação do eleitorado. Os pesquisadores apontam que é preciso interpretar em conjunto dois trechos da resolução do TSE: a determinação, mais ampla, de que é proibido o uso de conteúdos manipulados "com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral", junto com o trecho que fala especificamente dos deepfakes.

"A questão é saber se a norma exige o potencial de dano ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral para proibir a utilização de deep fake na propaganda eleitoral", diz o documento, acrescentando que "espera-se que o TSE venha em breve solucionar a questão, oferecendo uma interpretação definitiva que traga maior clareza e uniformidade na aplicação da norma".