Cervantes, San Tiago e Boris. Dom Quixote, o apólogo e o raio-X
Quanto a crônica anterior, “Cervantes e o tempo” (Folha de Pernambuco, 08/10/2024), destaco dois comentários dos enviados pelos leitores, por expressarem a influência do autor e do seu reconhecido livro cavaleiresco: 1) Cervantes, com o seu “Quixote”, vive através de gerações; 2) Além de alargar a percepção do alcance do “Quixote” e de reafirmar sua perspectiva atemporal, traz um cardápio de destinos temáticos, à guisa de guia, para quem desejar imersão na riqueza do cervantismo.
Não há dúvida de que o cervantismo, lastreado na figura do fidalgo Dom Quixote, entusiasma, quando nos move para o universo em que uma vitória (ventura) ou derrota (desventura) são simbologias à condição humana, no plano positivo, quando se luta por um ideal. O importante é saber seguir e lutar (aventuras), por causas nobres, pelos diversos caminhos que se descortinam diante do caminhante. Ao tempo, cabe proporcionar as ocasiões.
Essa posição humanizadora do “Quixote” tem da parte do carioca San Tiago Dantas (Francisco Clementino de San Tiago Dantas, Rio de Janeiro, 30/08/1911 - 06/09/1964) uma análise bem qualificada. Conhecedor da literatura, durante sua vida ele exerceu as atividades de advogado, jornalista, professor, escritor, diplomata, político e ministro de estado.
Autor do ensaio “Dom Quixote, um apólogo da alma ocidental”, apresentado em 1947, durante a comemoração do IV Centenário de nascimento de Miguel de Cervantes (Alcalá de Henares -- ES, 29/09/1547), San Tiago, com tal criação, legou ao cervantismo uma das mais belas interpretações sobre a saga do Cavaleiro da Triste Figura. Posteriormente, o ensaio foi publicado pela Editora Agir (1ª edição em 1948), com prefácio de Augusto Frederico Schmidt.
É possível ter uma visão do intérprete San Tiago logo no início do seu texto cervantino: “Se me é lícito empregar um dos termos favoritos da filosofia moderna, direi que vou tratar do “Quixote” como símbolo, isto é, do sentido que o próprio “Quixote” adquiriu, refletindo-se secularmente na consciência ocidental, onde se tornou, a meu ver, uma fábula construtiva, um episódio exemplar, a cuja luz julgamos muitas de nossas próprias experiências, e de que tomamos modelo para muitas de nossas aspirações”. E, no final, com uma grandeza instigante, diz: “O dom de si mesmo” salva o Quixote (o cavaleiro), e o faz triunfar de seus fracassos e enganos pelo exemplo de que deixou semeado à consciência dos tempos seguintes”. “O dom de si mesmo salva o Quixote, mas - herói ocidental em tudo - nesse dom de si mesmo ele tem um mediador, de cuja eficiência depende a plenitude do seu êxito: o amor de Dulcinea” -- “Ella pelea en mí y vence en mí, y yo vivo e respiro en ella, y tengo vida y ser” (Don Quijote, cap. XXX, I parte).
Em meados do último mês de outubro, no dia 17, no Recife, aconteceu uma demonstração de como o tempo e o dom de si mesmo contribui para um estado de coisas em diversas situações da vida… Então, uma legião de amigos do autor, nesse caso, prestigiaram o lançamento do livro “O raio-X de Boris Berenstein”. Um caderno de memórias, para o protagonista delas, o cidadão, médico radiologista e empresário Boris Berenstein.
No “O raio-X de Boris Berenstein”, de conteúdo bem-ordenado, à medida que a narrativa dos assuntos transcorre percebemos a virtude da história, da sociologia, do amor, do profissionalismo, e do empreendedorismo; bem como a realidade do inusitado e das adversidades, dos desafios e das superações, da estabilidade e do sucesso; enfim, a arte de viver, sob o prisma do futuro, isto é, com o crédito do tempo.
Tudo começou como num “sonho impossível”, sonho que, talvez, trata-se da mais remota das aptidões humana: o encontro da jovem Pola Scharzman com o soldado Leon Berenstein, em determinado lugar do Leste Europeu, na atual Moldávia, completamente arrasado na Segunda Guerra Mundial, pela cruel investida Nazi-fascista que ocasionou a maior tragédia da humanidade. Pola, uma das 50 prisioneiras sobreviventes de um grupo de 1500 pessoas, de um campo de concentração móvel. Leon, um sobrevivente soldado incorporado ao exército russo-soviético vencedor de uma das maiores batalhas de todas as guerras, contra os nazistas, a de Stalingrado.
Com o fim da guerra, Leon e Pola resolvem se casar e decidem vir morar no Brasil, na cidade do Recife, onde tinham parentes, a fim de construírem uma nova vida. Após enfrentarem uma complexa, longa e arriscada viagem, com o primeiro filho de seis meses nos braços, chegam ao destino desejado, a capital de Pernambuco; obtêm a primeira conquista.
Agora, o bom é que história familiar, e a do autor protagonista, Boris, está registrada em um novo livro, com hábeis lembranças dos acontecimentos, a partir dos relatos dele e a coautoria, na escrita, da jornalista Mona Lisa Dourado; pontualmente, a palavra é liberada para intervenções de Mary Berenstein, a esposa de Boris, porque não dizer, à maneira de Cervantes, sua dama inspiradora e fiel escudeira… São muitos os fatos interessantes, alguns tocam a emoção. Os exemplos pragmáticos de trabalho são didáticos. Nesse contexto, frases despertam a reflexão: “Se o amanhã não for melhor do que hoje, para que o amanhã” (do rabino Nachman de Breslov); [...] “a vida, sábia e generosa, não nos permite escapar de quem realmente somos e do impacto que podemos causar no mundo ao nosso redor” (do próprio autor).
O livro “O raio-X de Boris Berenstein” foi publicado pela Eu escrevo Editora, selo da Samucartum Produções, que estreia no mercado editorial com uma edição primorosa. Vamos à leitura.
P.S. O pianista Arthur Moreira Lima, um gênio da arte, faleceu no mês de outubro passado (30/10/2024). Uma perda inestimável. Ele gostava de vir à cidade do Recife, onde tinha amigos e amigas.
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*ADMINISTRADOR DE EMPRESAS (UFPE) E MEMBRO DA ASOCIACIÓN DE CERVANTISTA
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