Trio "Os Garotin" supera infância dura e se firma como uma das grandes sensações do ano na música
Grupo formado por amigos de São Gonçalo, no RJ, arrebanha três indicações ao Grammy Latino, incluindo a de artista revelação
Os astros se alinharam no céu de São Gonçalo (RJ). No início, eram apenas três moleques da periferia do município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no corre, tentando fazer virar a improvável vida de artista, o sonho de viver de música.
De um ano para cá, no entanto, o jogo virou para Cupertino, de 31 anos, Anxhietx, de 28, e Léo Guima, de 26. O trio Os Garotin é realidade, sensação que lota shows e faz a plateia cantar do início ao fim numa comunhão que impressiona.
O frisson em torno dos três se confirmou na última lista de indicados ao Grammy Latino: eles concorrem na categoria de artista revelação, e o disco de estreia do grupo, “Os Garotin de São Gonçalo”, lançado em maio, disputa nas categorias de melhor álbum pop contemporâneo em língua portuguesa e melhor álbum de engenharia de gravação.
Foram, ao lado do cantor Jota.pê, os artistas brasileiros com mais indicações ao prêmio, que divulgará os vencedores em cerimônia em Miami, na próxima quinta-feira.
"Artista revelação é uma categoria que abrange a América Latina, então ver o nosso trabalho considerado nesse lugar, e as três categorias juntas, é um negócio emocionante" celebra Cupertino, em entrevista presencial dos três rapazes ao Globo.
"A gente não acreditou. Quando saiu o anúncio, na hora, fizemos uma chamada de vídeo, nós três, comemorando muito, e à noite nos encontramos para brindar"
Nova família
Foi muita ralação até chegar nessa chamada de vídeo. Léo Guima tinha acabado de sair da escola, aos 19 anos, quando conheceu Victor Cupertino, um músico de 24 anos com boa rodagem na noite de São Gonçalo. De origem humilde, Léo morava na Favela Miguel Pinto, num lar conflituoso.
Os pais tinham brigas escandalosas, e ele cresceu, nas suas próprias palavras, num ambiente “perturbador”. Quando saiu de casa, chegou a morar de favor num quintal de parentes, “meio encostado, ninguém ligava pra mim ali”.
Não tinha dinheiro pra nada. E viu em Cupertino um exemplo a seguir.
"Eu fui um adolescente muito angustiado" relembra. "Não via perspectiva nenhuma na minha vida. Achava que não tinha mais futuro, não tinha saída. Comia na escola e na casa de amigos, nunca sabia se ia comer no dia seguinte"
Ele conta que o interesse por música surgiu na igreja, onde aprendeu a tocar violão e conheceu o irmão de Cupertino, que apresentou os dois.
"Eu achava muito legal que o Cupertino já tocava na noite, e tinha até lançado música. Era a única pessoa que eu conhecia que já tinha lançado música.
E música boa, refrão bom. Ficamos muito amigos e, depois de um tempo, a mãe dele, que hoje é minha mãe, chegou pra mim e disse: “A partir de agora você vai morar com a gente, vai ter seu quarto na nossa casa.” Eu não acreditei, chorei de felicidade"
Cupertino vinha de família de classe média. O pai, que era dono de farmácias, se viu numa crise financeira quando teve suas lojas assaltadas sucessivamente.
A grana apertou, mas seu trabalho nos bares o mantinha de pé. Conhece Anxhietx em um sarau no Rio, e o apresenta a Léo Guima.
"E aí começa uma amizade muito forte entre nós três. Fizemos uma música já no nosso primeiro encontro, que foi “Pouco a pouco” (penúltima faixa do disco “Os Garotin de São Gonçalo”)" conta Cupertino.
Anxhiet (nome artístico de Lucas Anchieta) ingressa na cena como fotógrafo de nomes do rap e hip-hop, como Orochi e Pelé MilFlows. Fazia parte do coletivo Gangzilla, que organizava festas de música preta em São Gonçalo.
"Ali eu fui pegando a maldade. Comecei a acompanhar a galera em shows, conheci o universo do estúdio, lancei alguns feats aleatórios. E em 2019, consegui gravar minha primeira música, “Sinta”.
Vinte dias depois do lançamento, a Ludmilla, do nada, me aparece no carro cantando como se fosse a canção da vida dela. Ela nem me marcou, mas já foi o suficiente pra maior galera começar a me ligar, fiquei doido, comecei a ganhar seguidores.
Fui crescendo. Um dia fui num sarau de penetra, e conheci o Cupertino"
Racismo explícito
Anxhiet foi criado pela avó — “que fazia tudo por mim”, ele lembra. Num momento de mais folga financeira, trocou de um colégio público para um particular:
"Eu era o único pretinho da escola. Sofria racismo explícito. Meu apelido era verme, as pessoas não encostavam em mim. Uma vez, uma menina encostou em mim sem querer e começou a chorar muito. Nunca vou esquecer disso"
Os três, então, passam a frequentar saraus no Rio de Janeiro, e os convites vão surgindo cada vez mais.
No início eles tinham, no entanto, a ideia de seguir carreiras solo, contribuindo mutuamente uns com os outros. Até o dia em que conheceram Paula Lavigne.
"Um dia a gente brotou lá na casa do Caetano Veloso e da Paula Lavigne. Ela falou: “Meninos, olha só, nada de apontar lá pra frente. Vocês vão se assumir como trio agora. E é esse trio que vai elevar a carreira individual de cada um”" conta Cupertino. "A gente tinha uma visão de crescer individualmente primeiro, para depois juntar. E ela inverteu esse processo. Abandonamos a nossa rota e assumimos o trio. Isso foi em 2022. E aí, em 2023, o trio nasce de fato"
A caminho de Miami para acompanhar a premiação do Grammy Latino, Paula Lavigne lembra ao Globo que Caetano achou os três “muito bons compositores, muitos bons cantores”.
O compositor baiano gostou tanto, que gravou com eles “Nossa resenha”, música de Cupertino, Anxhietx e Thomas Meira.
"Eles têm muita criatividade, muito frescor. Caetano ficou impressionado em como eles são completos, como se integram. A música que Caetano gravou era a preferida dele desde as primeiras audições" diz Paula Lavigne.
A música dos Garotin soa como um R&B de praia, groove fresco ancorado num funky soul dançante que faz lembrar os bailes black de antigamente. As letras simples falam de flertes e desejos, na maioria das vezes, com refrãos que funcionam.
“Os Garotin de São Gonçalo” tem produção de Júlio Raposo, que assina os arranjos das 12 faixas e é responsável por boa parte dos instrumentos do álbum.
"Vamos dizer que o Léo Guima é mais soul, o Cupertino é mais MPB e o Anxhietx é mais R&B, funk americano, rap" define Paula.
A turnê dos garotos vem lotando os espaços por onde chega Brasil afora. A estreia foi no Circo Voador, no Rio, em julho, com ingressos esgotados.
Em outubro, eles repetiram a dose na lona da Lapa. Recentemente, lotaram o Teatro Opinião, em Porto Alegre. Ainda assim, Cupertino, Anxhietx e Léo Guima evitam falar em crista da onda e mantêm os pés no chão.
"A gente está fazendo a nossa música, vamos seguir trabalhando. As coisas estão dando certo sim, a gente está em sintonia com a canção, o público está gostando, estamos vivendo isso tudo com a maior alegria" diz Cupertino.