OPINIÃO

Das crises erosivas aos riscos de ruptura: uma democracia fragilizada e desprotegida

No que entendo ser minha livre vontade de expressão, sinto-me levado por uma necessidade racional de estar diante de um confessionário público e aberto. Para dizer, sem rancores e dúvidas, que jamais me imaginei na "curva dos 60", submetido às incredulidades e sandices que pairam de todos os tribos de seres ditos "sapiens". De fato, tem sido duro sobreviver impactado por visões extremas e superficiais, sobretudo, quando o assunto é compreender o atual ofício político no seio da sociedade.

Parece mesmo que, no geral, o ser humano é vocacionado por propor soluções imediatistas. Curar um mal específico pelo remédio generalista costuma ser mais pragmático. Ou seja, "matar a boiada" representa a melhor escolha para o enfrentamento aos carrapatos. Por mais que a porteira de abra aos bovinos, para outras práticas não menos perversas, como bem defendia aquele ministro de tristes lembranças.

Bem, nessa linha de raciocínio, o que quero mesmo trazer à baila é demonstrar minha decepção com o "modus operandi" de muitos indivíduos. Precisamente, por potencializarem suas decepções com a política, na descrença do exercício dos agentes políticos e na disposição para combater os pilares de uma democracia que já não toleram. Justo este regime, que pode ter lá suas falhas sistêmicas, mas representa, de longe, o melhor de todos criados pelos "sapiens".

Na realidade dos fatos, depois de décadas de percepção dos valores democráticos, sustentados por uma boa dose de otimismo de consistência, por algo como 50 anos de distanciamento das ideias extremas, o mundo registrou um alerta sobre os sinais de erosão e os riscos de ruptura das democracias. Até então, entendo que os padrões políticos transitaram entre as práticas das socias-democracias, dos socialismos democráticos e dos liberalismos não-ortodoxos (sociais-liberalismos), vistos numa perspectiva geral.

No entanto, nessa própria dinâmica dos ciclos políticos, às fadigas e falhas naturais desses sistemas, somaram-se novos fenômenos sociais. Um bom exemplo dessa mudança de postura é a "soberania popular ao alcance das mãos" gerada pelo mundo digital, um fenômeno que, através do engajamento e da atenção, tem procurado fortalecer verdades absolutas. Tudo feito às custas da construção de narrativas falsas que, no vigor de uma espécie de narcose digital, atua para favorecer aquelas teses que só servem para enfraquecer a política, os partidos e as próprias democracias. Fez-se moda o entendimento de que o novo é ser "contra o sistema" e acreditar em "lideranças outsiders". Nesse embalo, uma essência discursiva contestável de "salvação da pátria", por defesa de valores que misturam três eixos argumentativos: 

a) o combate a uma corrupção de viés único (sempre impregnada e atestada no discurso do adversário); 

b) a propagação ideológica de compromissos religiosos (num desrespeito constitucional que atropela a laicidade do Estado, como uma aposta próxima de uma teonomia); 

c) a imposição de um padrão de costumes, que só fortalece os preconceitos mais abjetos (numa total ignorância sobre o respeito à diversidade que se estabelece a partir dos próprios indivíduos).

Em complemento a esses pontos, faço ainda destacar que, entre velhos e novos conceitos, um verdadeiro cataclismo aconteceu, algo que pôs em xeque a essência da política, como ciência e prática. Daí, por extensão, essa situação colocou os pilares democráticos em profundo abalo. Nesse nível de entendimento, sirvo-me do grande trabalho de pesquisa dos professores da Universidade de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt que, ao lançarem em 2018 o livro "Como as Democracias Morrem", protagonizaram   a gravidade do sistema político, através de um novo sinal de alerta. 

Cabe lembrar que os fatos que intencionaram desestabilizar as democracias se confirmaram de modo repetitivo nos EUA e no Brasil. Os fenômenos vistos naqueles "janeiros das trevas", logo após as derrotas eleitorais dos governos vigentes, bem expressam hoje a dimensão do problema. Ainda bem que as instituições tomadas como alvo foram capazes de resistir e fazerem prevalecer suas Constituições, em nome de suas democracias, mesmo que fragilizadas.

O danado, ainda, é que apesar das erosões, nada foi feito, efetivamente, para se proteger o solo fértil das democracias. As teses extremas não só continuaram em difusão, como ganharam notória robustez. Por mais incrível que tudo possa parecer. Basta para isso uma questão: o que dizer da vitória recente de Trump, cercado por processos judiciais, que derivaram de consequências do seu autoritarismo nato, além de sua carga de preconceitos? Não importaram os crimes cometidos e seus impulsos de racismo, misoginia e xenofobia. O contexto da emoção falou bem mais alto que a razão. E Trump seguiu incólume.

Enfim, uma síntese que se extrai de toda essa situação revela duas claras evidências. A primeira delas é que a banda da direita assimilou o mundo digital e com esse instrumento poderoso tem sabido tratar melhor os (res)sentimentos derivados das frustrações geradas pela política. A outra evidência é que a banda da esquerda não soube dar resposta para iguais (res)sentimentos, apegada que ficou aos valores e conceitos de um passado incondizente com a realidade. Assim, a partir de quem posso tratar como um centro de poder das decisões políticas, a vitória de Trump nas urnas parece ter consagrado três preocupações esperadas: a instabilidade na democracia, a disfuncionalidade das instituições e o efeito da tal narcose digital sobre a escolha eleitoral. Neste caso, é como se as tomadas de decisão tivessem à mercê dos hackers. 

O fato agora, depois de estabelecido nesse grau de demérito com relação à verdadeira política e à essência da democracia, está na ousadia de se enfrentar erros e omissões. É necessária e urgente a inflexão dessa tendência ou ciclo pernicioso, com a adoção de um novo e renovador estilo de se fazer política. Que seja atual e contundente, na retomada de uma utopia para realistas, à moda do que prescreveu Rutger Bregman.
 

Esse esforço é vital. Ainda dá tempo.

 

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*Economista e colunista desta Folha de PE

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