MEIO AMBIENTE

Elo perdido entre as mais antigas aves conhecidas e as atuais é descoberto no Brasil

Fóssil batizado de Navaornis é de animal que viveu há 80 milhões de anos no que hoje é SP

Dinossauro - @rota1976

Papagaio, periquito, arara. Sabiá, saíra e canário. Pato, peru, galinha. Beija-flor, tucano e uirapuru. Avestruz, gaivota e pinguim. Uni-vos. O avô de todas as aves, uma espécie de Adão do mundo da avifauna, precursor de toda diversidade de cores, formas, cantos e penas foi descoberto e é brasileiro. Viveu há 80 milhões de anos no que hoje é Presidente Prudente, em São Paulo.

A descoberta foi anunciada hoje na revista Nature e inscreve o Brasil no roteiro dos achados com potencial para sacudir até os ossos a paleontologia global. Revela um autêntico elo perdido e reafirma a qualidade da ciência brasileira.

— Se trata de um elo perdido entre as mais antigas aves conhecidas e as atuais. Ele apresenta características únicas que conectam o passado evolutivo das aves. Essa descoberta é um dos grandes achados da paleontologia mundial — destaca Ismar de Souza Carvalho, um dos autores do estudo e professor titular de paleontologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

No início, eram só os dinossauros e outros répteis da pré-história. Depois, a Terra viu surgir o Archeopteryx, criatura reptiliana, meio dinossauro meio ave, que viveu há 150 milhões de anos e foi descoberta na Alemanha, no século XIX. Por volta de 130 milhões de anos já existiam aves primitivas conhecidas como Enantiornithes. Eram criaturas cujos bicos tinham dentes e os pés eram virados para trás, como curupiras da pré-história.

Mas faltava uma ligação com as aves modernas. Esse elo perdido veio na forma do passarinho brasileiro, cujo tamanho diminuto é inversamente proporcional à importância para a ciência.

O Adão emplumado também pertence ao grupo das Enantiornithes. Porém, já representava um novo capítulo da evolução. Já não tinha dentes no bico, seus olhos eram grandes, como os das aves atuais. Sobretudo, seu crânio era muito parecido com o das aves modernas.

O título do estudo “Cretaceous bird from Brazil informs the evolution of the avian skull and brain” (“Ave do Cretáceo do Brasil informa a evolução do cérebro e do crânio das aves”, em tradução livre) é maior que o ancestral. Ele tinha o tamanho de um pardal, cerca de 10 cm, afirma Carvalho.

A pesquisa tem como primeiro autor Luis Chiappe, do Dinosaur Institute, em Los Angeles, e conta com coautores de Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e Argentina. Mas o estudo só foi possível graças à descoberta de William Nava, diretor do Museu de Paleontologia de Marília, em São Paulo.

O Adão de penas foi batizado de Navaornis em homenagem a Nava, que muito tem contribuído com a paleontologia brasileira e já descobriu dinossauros e crocodilos fósseis.

Incansável em sua dedicação aos fósseis da chamada Bacia Bauru, uma das mais importantes regiões fossilíferas da América do Sul, Nava teve a obstinação de procurá-los até mesmo em lugares improváveis.

— Ele escavou um barraco na beira da estrada, na entrada de Presidente Prudente. E achou não apenas um, mas dois fósseis em perfeito estado, completos. Congelados no tempo por 80 milhões de anos. E teve a grandeza de compartilhar seu achado, dando à ciência a chance de estuda-los e revelar uma descoberta dessa magnitude — destaca Carvalho.

Raramente se encontram fósseis completos e bem conservados. Mais excepcional ainda é descobrir um completo e com o crânio não apenas inteiro, mas ainda preenchido por areia. O sedimento formou uma espécie de molde do cérebro. O achado beira quase o milagre, se tratando de uma criatura com a fragilidade de um canarinho.

Foi essa excepcionalidade que deu aos cientistas a oportunidade de perscrutar mistérios da evolução. Diferentemente da maioria dos fósseis, esmagada pelo peso dos milênios, esse manteve a forma tridimensional. E isso abriu um túnel do tempo para o cérebro das aves da era dos dinossauros. O estudo foi realizado por meio de tomografias, o que preservou a integridade do fóssil, que repousa agora para a posteridade no Museu de Marília, sob os cuidados de Nava. O cérebro pré-histórico foi comparado com o de uma saíra atual.

— Fico emocionado. É realmente uma janela para um mundo perdido e uma descoberta daquelas que só ocorrem uma vez a cada cem anos — salienta Carvalho.

O pequeno passarinho era, sobretudo, um forte. Há 80 milhões de anos a América do Sul já havia se separado da África e o Oceano Atlântico começava a se formar. Onde hoje é Presidente Prudente e, na verdade, boa parte do território brasileiro era ocupado por vastas planícies. Era uma terra de gigantes, como os titanossauros, um grupo de dinossauros sul-americanos, alguns dos quais superavam os dez metros de comprimento.

O clima era mais árido e quente do que o atual. Havia grandes rios temporários, assim como lagoas e alagadiços sazonais. E as chuvas, quando vinham, eram torrenciais, enchentes-relâmpago colossais, que deixaram sua passagem registrada em muitas camadas de sedimentos.

Uma das hipóteses é que o avô das aves tenha sido vítima de uma enxurrada dessas, sepultado vivo no ninho. Uma tragédia individual que milhões de anos depois o levou a alçar voo para a posteridade.

As mudanças anatômicas do Navaornis permitiram as aves se espalhar pelo planeta. Os dinossauros se foram há cerca de 65 milhões de anos, mas os descendentes do pequenino passarinho brasileiro prosperaram.

— Muito do que se sabe sobre a pré-história tem as características de achados nos EUA e na Europa. Descobertas como essa revelam a perspectiva do território brasileiro, do Hemisfério Sul — ressalta Carvalho.

Hoje, há 10.824 espécies de aves catalogadas, mas se acredita que o número pode chegar a 18 mil, pois florestas tropicais como as da Amazônia ainda têm muito a revelar. O Brasil do Navaornis é o segundo país mais rico em aves do mundo, com 1.962 espécies. Atrás apenas da Colômbia. Mas o Adão de penas é brasileiro.