EUA

Trump busca enfrentar os pilares do 'Estado profundo' com nomeações provocativas

O Departamento de Justiça, o Pentágono e as agências de inteligência foram os três setores que se mostraram um obstáculo para o republicano em seu primeiro mandato

O presidente eleito dos EUA, Donald Trump - Allison Robbert / POOL / AFP

O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, não tem perdido tempo para escolher quem assumirá as três instituições governamentais que mais frustraram suas ambições políticas durante seu primeiro mandato (2017-2021), deixando claro que não tolerará resistência no segundo.

Com suas escolhas para liderar o Departamento de Justiça, o Pentágono e as agências de inteligência, o republicano passou por cima dos tipos de figuras que tradicionalmente ocupavam esses cargos oito anos atrás, optando, em vez disso, por aliados com currículos não convencionais — e cuja principal qualificação parece ser a lealdade a ele.

As escolhas de Matt Gaetz como procurador-geral, Pete Hegseth como secretário de Defesa e Tulsi Gabbard como diretora de Inteligência Nacional chocaram Washington.

Apesar disso, qualquer pessoa que tenha ouvido as promessas e queixas de Trump durante a campanha nos últimos anos poderia prever que ele escolheria companheiros dispostos a executar sua ofensiva contra o governo.

Se confirmados, Gaetz, Hegseth e Gabbard seriam os principais líderes na autodeclarada guerra de Trump contra o “Estado profundo”.

Os três compartilham sua convicção de que o governo está repleto de servidores públicos de carreira que sabotaram suas prioridades enquanto ele estava no cargo e o perseguiram depois que ele saiu. Nenhum deles tem experiência relevante para os postos, especialmente se comparável à de antecessores de qualquer um dos partidos para esses cargos.

Mas todos os três devem inflamar o status quo, segundo as palavras de Stephen Bannon, ex-estrategista da Casa Branca, sobre Gaetz.

— Vocês tentaram destruir Trump, tentaram aprisioná-lo e quebrá-lo. Ele é inquebrável. Vocês não conseguiram destruí-lo. E agora ele se voltou contra vocês — disse Bannon em seu podcast na quarta-feira, após anúncio da nomeação de Gaetz.

Bannon apontou apresentadores, produtores e convidados da rede americana MSNBC, além de ex-investigadores e funcionários do FBI, como exemplos de alvos que Gaetz perseguiria se tivesse o poder para isso.

O ex-estrategista disse que a administração de Trump era “temida” porque, já no primeiro mandato, estava “indo derrubar os globalistas e o Estado profundo”.

Nomeações provocativas
A escolha de Gaetz, em especial, foi tão surpreendente para alguns setores em Washington que até mesmo republicanos tiveram dificuldade em entender se Trump estava falando sério. Alyssa Farah Griffin, ex-assessora de Trump na Casa Branca, escreveu nas redes sociais: “A essa altura, ele (Trump) está apenas brincando com os EUA”.

Assim como Trump, Gaetz foi investigado pelo Departamento de Justiça pelo suposto relacionamento sexual com uma adolescente de 17 anos e uma possível violação das leis federais de tráfico sexual. Ele se vangloriou da situação, descrevendo-se como “o homem mais investigado do Congresso dos EUA”. O departamento encerrou a investigação em 2023 sem apresentar uma acusação.

A disposição de Trump em escolher indicados que antes seriam inimagináveis também se estendeu a outras agências de segurança nacional. Na quinta-feira, Trump escolheu Robert F. Kennedy Jr., ex-candidato presidencial conhecido por liderar o movimento antivacina, para ser secretário de Saúde e Serviços Humanos.

Para a secretaria de Segurança Interna, Trump indicou a governadora Kristi Noem, de Dakota do Sul, cujas chances como vice-presidente evaporaram após ela admitir que matou seu próprio cachorro por considerá-lo indomável.

Mas o Departamento de Justiça, o Pentágono e as agências de inteligência foram os três setores do governo que mais resistiram às tentativas anteriores de Trump de legitimar sua Presidência e reverter sua derrota nas eleições presidenciais de 2020.

O Departamento de Justiça recusou as demandas de Trump para processar muitos de seus adversários, incluindo a ex-secretária de Estado Hillary Clinton, o ex-presidente Barack Obama e o antigo vice do democrata, Joe Biden, embora tenha investigado outros que desagradaram o presidente à época.

Mais criticamente, o departamento resistiu à pressão para declarar publicamente que houve irregularidades na eleição de 2020 que justificassem reverter a vitória de Biden.

O Pentágono, por sua vez, deixou claro que não cooperaria com um esforço ilegal para usar tropas contra opositores domésticos ou ajudar Trump a permanecer no poder.

Em dezembro de 2020, Michael Flynn, general aposentado e aliado de Trump, tentou persuadir o presidente a declarar uma espécie de lei marcial e ordenar que os militares apreendessem equipamentos de votação para refazer as eleições nos estados em que ele perdeu.

O general Mark Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto, já havia sinalizado por meses que não permitiria que os militares fossem transformados em uma arma política.

— Ele queria usá-los como sua alavanca, mas eles foram uma barreira — disse Olivia Troye, que atuou como assessora de segurança nacional do vice-presidente Mike Pence durante o governo Trump e se tornou uma crítica vocal do presidente eleito.

Por outro lado, é mais difícil imaginar Matt Gaetz, Pete Hegseth ou Tulsi Gabbard desafiando Trump após sua nova posse em 20 de janeiro. Gaetz, um republicano da Flórida que acabou de renunciar ao seu assento na Câmara, tem sido um crítico feroz do departamento que pode vir a liderar — o mesmo departamento que o investigou por tráfico sexual antes de arquivar o caso.

Nesta semana, Gaetz sugeriu abolir o FBI e o Bureau de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF), que estariam sob sua supervisão como procurador-geral. Além disso, após a posse, espera-se que Trump demita Christopher Wray, o diretor do FBI que ele próprio nomeou em 2017, por considerá-lo “independente demais”.

Novas escolhas
Hegseth, apresentador da rede conservadora Fox News que chamou a atenção de Trump ao defender um militar condenado por crimes de guerra, serviu como major na Guarda Nacional do Exército e foi destacado para o Iraque e o Afeganistão, mas não tem experiência em liderar uma grande organização, muito menos uma força armada de dois milhões de soldados.

Ele também tem sido um defensor ferrenho de Trump e um crítico do que chama de “militares modernos [da agenda] woke”, termo usado nos EUA para falar de pessoas que apoiam pautas ligadas à igualdade racial, social e de gênero.

Gabbard, ex-congressista democrata do Havaí que deixou o partido em 2022 e apoiou Trump, passou duas décadas na Guarda Nacional do Exército e na Reserva do Exército, alcançando o posto de tenente-coronel, mas não tem experiência nas agências de inteligência que supervisionaria.

Muitas vezes, ela repetiu posições da Rússia sobre a Ucrânia e a Otan, a ponto de um apresentador da televisão estatal russa chamá-la de “nossa namorada”.

Quando Trump assumiu o cargo pela primeira vez, em 2017, os escolhidos para esses mesmos cargos foram Jeff Sessions, senador republicano e ex-juiz, como procurador-geral; Jim Mattis, general aposentado da Marinha de quatro estrelas, como secretário de Defesa; e Dan Coats, ex-senador republicano de Indiana e embaixador na Alemanha, como diretor de Inteligência Nacional.

Todos os três se mostraram independentes demais para Trump. Sessions irritou o republicano ao se recusar a remover o conselheiro especial Robert S. Mueller III, designado para investigar o caso da intervenção russa na campanha eleitoral americana de 2016, na qual Trump saiu vitorioso.

Ele acabou sendo demitido. Mattis resistiu a muitas ideias de Trump que considerava perigosas para a segurança nacional e, eventualmente, renunciou em protesto contra a decisão de abandonar aliados curdos na Síria.

Coats defendeu os analistas de inteligência em suas conclusões sobre a interferência russa nos EUA. Ele também acabou renunciando.

Trump aprendeu com essas experiências. Quando chegou à Casa Branca pela primeira vez, nunca havia ocupado um cargo público e, portanto, frequentemente dependia de pessoas que não conhecia bem.

Agora, retorna oito anos depois com uma compreensão muito melhor de como o poder funciona na Casa Branca — e com uma ideia mais clara de em quem confiar. No processo, segundo Troye, ele está usando a suposta “instrumentalização do governo” pelos democratas como justificativa para reverter a situação contra seus adversários.

— É quase uma projeção, porque ele faz exatamente o que acusa essas pessoas de fazerem. É a politização dessas comunidades — disse.