Brasil teme que Milei vire dor de cabeça na cúpula do G20 e faça acenos a Bolsonaro
Agenda do presidente argentino, que chegará ao Rio na tarde de domingo, é guardava a sete chaves, assim como o hotel onde ficará hospedado
Antes mesmo da chegada do presidente da Argentina, Javier Milei, ao Rio, prevista para este domingo de tarde, a tensão entre a Casa Rosada e o governo brasileiro escalou na reta final da negociação para a elaborar a declaração final que será anunciada pelos presidentes na cúpula de chefes de Estado e de governo do G20, no início da semana que vem.
Em meio a rumores sobre eventuais contatos entre Milei e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que ganharam força após uma visita relâmpago do argentino aos Estados Unidos, onde participou de um jantar junto ao presidente eleito Donald Trump, a delegação argentina, confirmaram fontes do governo brasileiro, tentou barrar a menção no documento uma iniciativa central para a presidência brasileira do G20: a taxação dos super-ricos.
A cada dia que passa, cresce o temor de que a presença de Milei, que esta semana também anunciou seu desejo de negociar um acordo de livre comércio com os EUA, o que violaria regras internas do Mercosul, na cúpula vire uma enorme dor de cabeça para o Brasil de Lula.
Os temores se aprofundaram após o encontro entre Milei e Trump na quinta-feira, no resort de Mar-a-Lago, e, coincidência ou não, a mudança de posição dos negociadores argentinos que já estavam no Rio. Além de Trump e vários de seus futuros funcionários, esteve no jantar de luxo na Flórida o magnata Elon Musk, que sempre se opôs à taxação dos super-ricos. De acordo com fontes do governo brasileiro, “a mudança de posição dos argentinos é uma jogada claramente política, e um ataque a uma bandeira que contraria os interesses econômicos dos aliados de Milei”.
Agenda secreta
A agenda de Milei nas 48 horas em que estará no Rio é mantida a sete chaves. Nem mesmo os representantes diplomáticos do país no Brasil sabem, ainda, onde ficará hospedado e com quem se reunirá o chefe de Estado. O presidente argentino chegará junto a uma pequena comitiva, integrada por sua irmã, Karina Milei, secretária geral da Presidência, o porta-voz Manuel Adorni, o novo chanceler Gerardo Whertein, e o ministro da Economia, Luis Caputo. O governo brasileiro, confirmaram fontes, teme que Milei, que chegará num avião fretado, segundo fontes argentinas, possa fazer acenos a Bolsonaro durante sua visita ao país.
Por parte do Brasil, acrescentaram as fontes consultadas, a decisão é continuar na linha de fazer gestos que mostrem o interesse de Lula de preservar a relação entre Estados. O último deles foi a convocação do novo embaixador argentino em Brasília, Daniel Raimondi, para apresentar cartas credenciais a Lula, na última quinta-feira.
Raimondi está no Brasil desde junho, mas somente agora, às vésperas da cúpula do G20, foi chamado para uma cerimônia que, no manual da diplomacia, tem enorme significado. Até a apresentação de cartas credenciais ao presidente, os embaixadores não podem, por exemplo, ser convidados para participar de eventos nos quais estará o chefe de Estado. Essa regra nem sempre é cumprida à risca, mas a apresentação de cartas credenciais é um último sinal verde do governo local a um embaixador estrangeiro. Por essa razão, justamente, muitas vezes é um recurso usado pelos governos para expressar desagrados.
A decisão de convocar Raimondi — sem muita antecipação — confirma, disseram fontes oficiais, que “Lula quer continuar mostrando disposição a trabalhar com a Argentina de Milei, apesar das conhecidas diferenças ideológicas entre ambos”. A recepção ao novo embaixador, comentaram fontes brasileiras e argentinas, foi cordial. Numa rápida conversa, Lula defendeu a necessidade de diálogo entre os dois países e sua disposição a continuar promovendo a relação “entre Estados”.
Está claro que o presidente brasileiro não tem interesse em buscar uma aproximação com Milei, e o sentimento é mutuo. Fontes do governo Lula confirmaram que o presidente não solicitou, nem solicitará, uma reunião bilateral com o argentino. Milei tampouco o fez e, segundo fontes argentinas, conversar com Lula no âmbito da cúpula de chefes de Estado e de governo do G20 não está nos seus planos. Em resumo, os dois presidentes dos dois países mais importantes do Mercosul e da América do Sul pretendem se ignorar mutuamente durante os dois dias de reuniões no Rio, com exceção do único momento em que não podem fazê-lo: a chegada de Milei ao Museu de Arte Moderna (MAM), na manhã de segunda-feira, quando, como todos os demais presidentes, será recebido por Lula.
Segundo fontes argentinas, Milei poderia ter outras reuniões bilaterais no Rio, ainda a serem confirmadas. Antes de chegar ao Brasil, o presidente argentino receberá o francês Emmanuel Macron em Buenos Aires. E após seu retorno à Argentina, na tarde do dia 19, está prevista uma visita oficial da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, com quem Milei mantém forte sintonia.
Visita a Mar-a-Lago
O presidente argentino chegará ao Rio no domingo após uma intensa e publicitada visita aos Estados Unidos, onde participou de uma festa de gala organizada pelo America First Policy Institute na residência particular do republicano, em Palm Beach. No evento, Milei posou para fotos ao lado de Trump e Musk e, segundo declarações feitas pelo próprio líder argentino, foi chamado de “meu presidente favorito” pelo próximo mandatário americano.
As imagens do encontro foram divulgadas pelo líder argentino e vários membros de seu gabinete nas redes sociais, ao som da música YMCA, da banda Village People, uma das maus usadas por Trump em sua campanha eleitoral.
O encontro esteve marcado por uma efusiva troca de elogios entre Milei e Trump, e o anúncio, por parte do argentino, de que buscará selar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, iniciativa que feriria normas jurídicas do Mercosul. Os membros plenos do bloco não podem assinar entendimentos com outros países ou blocos sozinhos, regra que outros membros, sobretudo o Uruguai, questionam. Se Milei insistir com essa ideia, provocará uma crise interna, faltando poucas semanas para a cúpula de presidentes que será realizada em Montevidéu, em dezembro.
O governo brasileiro observa os movimentos do presidente argentino com preocupação e, por enquanto, em silêncio. O interesse é continuar cooperando, já que a Argentina é um dos principais parceiros comerciais do Brasil e um país onde as empresas brasileiras fazem robustos investimentos. Nesse sentido, em paralelo à cúpula do G20 será assinado um acordo bilateral sobre gás, que busca ampliar as exportações de gás argentino para o mercado brasileiro. Lula e Milei não participarão da reunião, que deverá ser comandada por ministros de ambos os governos.
— Nas atuais condições, podemos avançar em acordos comerciais mais amplos com os EUA, da mesma maneira que estamos avançando com a China — declarou Milei a uma emissora de rádio argentina, antes de embarcar para os EUA.
De acordo com uma fonte argentina, “está claro que teremos ruídos na relação bilateral nos próximos tempos, mas nosso vínculo é tão importante que esses ruídos devem ficar num nível superficial. É o que muitos esperamos”.