Família homoafetiva: ciência possibilita filhos com a genética de dois pais ou duas mães
Número de crianças geradas por casais homoafetivos cresce no Brasil
O nascimento de Antonella, de apenas seis meses, marca dois importantes progressos: a abrangência do conceito “família” por parte da sociedade brasileira e as descobertas científicas.
A bebê é fruto do relacionamento do gerente de vendas Jarbas Mielke Bitencourt, 48 anos, e do fotógrafo Mikael Mielke Bitencourt, 35.
A menina foi fecundada a partir do óvulo da irmã de Mikael, Marrie Bortolanza, com o sêmen de Jarbas. Já a gestante de substituição, isto é, quem gerou a criança em seu útero, foi Jéssica Konig, amiga e comadre do casal. A família vive em Imbé, no Rio Grande do Sul.
Descrita por Jarbas e Mikael como “a primeira criança da região Sul a nascer com a genética de dois pais”, a pequena reflete uma tendência em crescimento no Brasil: casais homoafetivos gerando biologicamente seus bebês.
No laboratório de reprodução humana Clínica Mãe, em São Paulo, o número pulou de cinco, em 2011, para 68 nascimentos em 2023.
O crescimento foi de 1360%. Ao todo, foram cinco casos homoafetivos masculinos: um em 2016; outro em 2020; dois em 2021 e um último no ano passado.
O diretor da Clínica Mãe, o ginecologista e obstetra Afonso Massaguer, observa que, cada vez mais, casais do mesmo gênero estão procurando o serviço de reprodução humana.
O fenômeno se dá pela falta dos óvulos e do útero por parte dos homens e, para as mulheres, dos espermatozoides.
— Já fiz muitos partos de casais homoafetivos. Modifica completamente a família. Fico muito feliz de poder ajudar um casal e uma família que imaginava que não poderia ter uma criança. Os avós imaginavam que não teriam netos. Era uma grande dor — detalha Massaguer.
Especialista há mais de 25 anos na área, ele explica que, para realizar o sonho da maternidade homoafetiva, há uma busca no banco de sêmen por esse material genético.
A gravidez é, então, gerada através de uma inseminação artificial (o sêmen é inserido no útero durante o período fértil) ou de uma fertilização in vitro (FIV, quando o óvulo é retirado do corpo da mulher e, em laboratório, é fertilizado com o sêmen doado, cujo embrião é colocado no útero).
É possível deixá-lo na barriga da parceira não doadora, como forma de fortalecer o vínculo materno.
Por outro lado, no caso da dupla paternidade, são necessárias uma doadora de óvulos, que faça uma FIV, e um útero de substituição.
A mulher escolhida para a função deve ser da família ou alguém que não receba nenhuma compensação econômica pela gestação, de acordo com Massaguer.
A barriga de aluguel não é permitida no Brasil.
O ginecologista identifica qual é o tipo de casal que mais procura pelo serviço.
— Casais de mulheres são mais comuns pela facilidade na aquisição do sêmen. Muitos homens imaginam que é impossível ou muito difícil pelo desconhecimento e pela ideia que dá mais trabalho. Mas a maioria consegue. Dá super certo.
Sonho de ser pai
Tópico cada vez mais debatido, a multiparentalidade ou pluriparentalidade é a possibilidade jurídica de alguém ter mais de um vínculo materno ou paterno.
Em especial, o termo abrange as parentalidades biológica e socioafetiva.
A aprovação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) da dupla paternidade e da maternidade homoafetiva no registro de nascimento de crianças aconteceu em 2011, quando foi reconhecida a união de casais do mesmo gênero como entidade familiar.
Dois anos mais tarde, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) firmou efetivamente a possibilidade da habilitação, da celebração de casamento civil e da união estável entre pessoas gays e lésbicas.
O STJ só autorizou a adoção por parte desses casais em 2015.
Jarbas relembra que o desejo pela paternidade começou na primeira década de casado. Mikael e ele pensaram em adotar uma criança, “um processo demorado no Brasil”, dizem.
Em busca de outras opções, o casal descobriu o útero de substituição, método mais conhecido como “barriga solidária”.
Antonella nasceu em 17 de maio, data em que se celebra o Dia Internacional de Combate à Homofobia.
— Tinha todo o calendário de maio, mas foi justo neste dia. Não tenho dúvidas que, espiritualmente, Antonella veio a este mundo para mostrar à sociedade a naturalidade e a normalidade da construção de uma família homoafetiva — afirma Jarbas.
Presidente do Departamento Científico de Genética da Sociedade Brasileira de Pediatria, o geneticista Salmo Raskin pontua que casos de partenogênese, erroneamente encarados como opção para casais homossexuais, “são raríssimos em humanos”.
— Partenogênese é o tipo de reprodução em que o desenvolvimento de um embrião ocorre a partir de um óvulo não fecundado, sem a intervenção de machos. É uma estratégia assexuada, que pode ser encontrada em algumas espécies de animais e plantas.
Legislações distintas
Embora o movimento esteja crescendo no mundo, nem todos os países permitem a paternidade dupla. A Itália, onde há um governo de extrema-direita, impõe barreiras para relacionamentos homoafetivos.
O casamento gay é ilegal e os casais não podem recorrer à inseminação artificial ou à adoção.
Até o mês passado, a única opção era procurar barriga de aluguel fora do país. No entanto, o Parlamento italiano aprovou um projeto de lei que proíbe casais de viajar ao exterior para fazê-lo. A prática foi classificada como “crime universal”.
Os pais que voltarem à Itália com filhos gerados por barriga de aluguel podem ser multados em até €1 milhão (cerca de R$6 milhões).
Já nos Estados Unidos, a barriga de aluguel é uma prática comum usada por casais heterossexuais e homoafetivos.
Até o nascimento do bebê, a gestação pode custar até $200 mil (aproximadamente, R$1.15 milhões), um valor pago para a clínica de fertilidade, a agência de barriga de aluguel, os seguros saúde, os advogados, os psicólogos e assim por diante.
Cerca de 20 milhões de brasileiras e brasileiros, o que corresponde a 10% da população, se identificam como LGBTQIA+, de acordo com a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).
A pesquisa “Global Advisor – Pride 2023”, realizada no ano passado pelo instituto Ipsos, aponta que o Brasil é o país com o maior número de pessoas autodeclaradas da comunidade no mundo.