Ainda Estou Aqui...E no Momento Certo
Acho comum que uma situação capaz de representar o que seja uma oportunidade de momento, possa ser traduzida tal e qual aquela velha história a respeito da passagem pontual do bonde na parada. Digo isso como simples recurso de expressão, na qual procuro evidenciar que o "bonde passa" e, diante da atitude de nele subir, pode-se desfrutar da melhor das oportunidades.
Faço essa alusão para falar de cinena. Agora, com o intuito de integrar e fortalecer os coros virtuosos e os aplausos emocionados, que consagram mais uma obra do competente Diretor Walter Sales. Assim, ao conduzir mais um filme brasileiro que já sinaliza para o sucesso na trajetória internacional, pela possibilidade de compor a lista de concorrentes ao Oscar, Walter e sua obra fazem jus aos registros que cabem à História. Dois deles parecem-me imediatos, conectados e oportunos. O momento da difusão do filme em si, bem como, da atualidade do tema. Neste último caso, pelos fatos que tentam por sob risco a democracia.
Em prineiro plano, quero aqui considerar o fato de uma obra de Walter estar, pela segunda vez, como uma indicação competitiva para o Oscar. Mesmo que essa escolha ainda não tenha sido definida, o sucesso antecipado do filme, dado pela reação emotiva do público, para mim já conta - e muito. Num segundo plano, pela circunstância de se trazer à tona um tema que, ocorrido num passado de trevas, ainda paira como um fantasma a amedrontar os pilares de uma democracia, que parece mal nutrida. Coisas de um mundo que, de tão esquisito nos seus ritos políticos recentes, tem propiciado o ressurgimento de um passado, que se supunha superado pelas próprias lições da História.
Sobre a essência do filme em si, posto aqui pelo surpreendente interesse do público, há muito o que se dizer. Inclusive, sobre essa conexão que aqui antecipei, entre o passado e o presente. Nesse embalo, o fato principal a destacar está mesmo na reconquista de uma plateia, que valorize o produto "made in Brazil". Um contexto que irá contribuir para uma necessária melhora do "market share" do produto nacional, na plataforma tradicional: as salas de cinena.
De fato, em menos de 15 dias de ocupação nesses ambientes, superar a barreira do milhão de espectadores, fora do gênero das comédias, representa um feito considerável. Embora eu tivesse, particularmente, essa expectativa, sobrava-me ainda um certo nível de desconfiança, por não saber bem sobre como seria a disposição e engajamento, sobretudo, dos mais jovens. Por mais que a essência político-ideológica do filme esteja alinhada com uma identidade temática maior (o drama familiar de uma mulher guerreira, mesmo que vítima das agruras de um regime político repressor e autoritário), preocupava-me o desinteresse de uma juventude, que parece distante e desligada de quaisquer fatos históricos. Afinal, por tudo que se enxerga hoje nas redes sócias, para o bem ou para o mal, verdadeiro ou falacioso, o que se extrai de caldo cultural é um sumo genérico e superficial. E esse baixo interesse por um drama, que vem do obscurantismo gerado pelos porões de um regime autoritário, parecia-me não ter apelo. No entanto, os números alcançados (embora merecessem patamares melhores) trazem algum alívio. Não só ajudam a melhorar a presença do conteúdo brasileiro no mercado exibidor das salas de cinema, tal e qual contribui para algum entendimento de que há ambiente para filmes temáticos bem produzidos e distribuídos. Mesmo que História e Política estejam na genética do filme
O outro lance da oportunidade histórica está na tal conexão de um tema do passado que merece ser visto e refletido, na intenção de que erros e omissões não se repitam. Tudo isso, em nome dos quase 40 anos de consolidação democrática. Ao trazer para as telas um passado de repressão e dor, motivado pelo poder discricionário do Estado, o grande mérito da obra ficou mesmo por conta da luta de uma mulher (Eunice Paiva) que, diante das adversidades que lhe foram impostas, sobreviveu com sua família. A dura realidade dela mostrou que a resistência, sem que soubesse do destino de um marido e pai presente (Rubens Paiva), foi um ato de terror do Estado. Assim, ao se tirar dessa figura o livre exercício político, pela cassação do mandato e, em seguida, desaparecimento (com morte só oficializada por certidão anos depois), ficou claro que ao tamanho do fato histórico coube o devido registro. Agora, ainda mais evidente, pela proposta de fazê-lo acontecer em filme. E para o mundo.
Nesse sentido, a ideia de se revelar pelas telas que a protagonista "ainda estava aqui", deu-se na retomada da difusão de iniciativas mais recentes, que expuseram as instituições democráticas ao abalos sísmicos (e cínicos). Mais ainda: a coincidência desse desempenho do público do filme nos cinemas, quase que em momento simultâneo com dois novos abalos. Refiro-me aqui ao ato criminoso da Praça dos 3 Poderes, praticado pelo homem-bomba imbuído do espírito aparente de lobo solitário (ou solidário?). Do mesmo modo, que me refiro às prisões dos responsáveis pelo "planos de terror", baseado numa intenção de tomada de poder com morte dos dois principais lideres do Executivo e um outro do Judiciário. Portanto, toda concepção de um crime político, não muito diferente daquele que chegou a ser efetivado naquela realidade passada, que foi tão bem revelada pelo filme.
Tamanhas conexões fazem despertar que, no momento certo, de uma coincidência histórica, ainda estamos por aqui, justo para rechaçar quem ignora a democracia e dela quer distância. Se não for assim, para que valeram esses quase 40 anos de esforços, em favor da plenitude democrática?
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*Economista e colunista da Folha de PE
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