Vape: em 1 ano, usuários têm até 6 vezes mais nicotina no organismo do que fumantes de longo prazo
Pesquisa do Incor sugere que os cigarros eletrônicos podem representar um risco substancialmente maior do que os tradicionais para a dependência
No Brasil, os vapes, ou cigarros eletrônicos, são proibidos pela Anvisa. Entre os motivos estão ausência de evidências sobre uso para o fim do tabagismo, tendência de aumento do uso entre jovens, riscos a longo prazo e política de controle do tabaco. Mas isso não impede a população de utilizá-los. À medida que isso acontece, surgem também os sinais de dependência.
De acordo com uma pesquisa divulgada nesta segunda-feira (25), as concentrações de nicotina no organismo de pessoas que usavam cigarro eletrônico há apenas um ano chegaram a ser até seis vezes superiores às de pessoas que fumaram 20 cigarros por dia, durante cerca de 25 anos. Essa quantidade equivale a um maço.
O estudo também revelou que a maioria dos usuários tentou abandonar o dispositivo, sem sucesso, evidenciando a dependência e intensificando os impactos emocionais.
Para a cardiologista Jaqueline Scholz, diretora do Núcleo de Tabagismo do InCor e coordenadora da pesquisa, essa diferença significativa sugere que os cigarros eletrônicos podem representar um risco substancialmente maior para a dependência.
A pesquisa inédita foi realizada pelo Incor, em parceria com a Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo e o Laboratório de Toxicologia da Rede Premium de Equipamentos Multiusuários da FMUSP. O objetivo foi avaliar o comportamento, a percepção de risco, o perfil socioeconômico e o hábitos dos usuários desses dispositivos.
Para isso, foram ouvidas 417 usuários de cigarro eletrônico, frequentadores de bares, shows e eventos, em diversas cidades do estado de São Paulo. Além disso, o estudo mediu os níveis de nicotina e nicotinina por meio de amostras de saliva dos participantes.
Os resultados mostraram que a maioria dos usuários desse tipo de dispositivo são pessoas jovens, brancas, de classe média alta e alto grau de escolaridade. O tipo de vape mais usado foi o descartável e entre os participantes, 60% eram novos usuários, ou seja, não tinham fumado cigarro tradicional antes, enquanto 40% eram pregressos de cigarro. De acordo com Scholz, isso evidencia que os cigarros eletrônicos são a porta de entrada para o tabagismo.
A avaliação dos níveis de nicotina encontrado nesses usuários surpreendeu os pesquisadores. Entre os usuários de vape que afirmaram não sentir dependência, a média de nicotina no organismo foi de 138 nanogramas por ml.
Naqueles que afirmaram sentir alta dependência desses dispositivos, a média foi de 435 nanogramas por ml. Entre esses usuários de maior dependência, 49 tinham valores de nicotina acima de 400 nanogramas por ml, sendo 4800 o maior nível observado.
Para fator de comparação, pacientes em tratamento para tabagismo que fumaram cerca de 20 cigarros por dia, ao longo de, em média, 25 anos, apresentavam uma média de 396 nanogramas por ml de nicotina no sangue.
"Ou seja, pessoas que usavam cigarro eletrônico há somente um ano tinham níveis médios semelhantes ao de pacientes que fumaram cigarro por 25 anos. Também tiveram casos em que o nível chegou a seis vezes mais que observado em fumantes de cigarro tradicional e é preocupante porque mostra a rapidez com a dependência pode se instalar ", avalia Scholz.
Esse alto nível está associado à forma de entrega de nicotina - a intensidade de oferta de nicotina dos cigarros eletrônicos é maior que a dos tradicionais - e também à frequência de uso. Enquanto uma pessoa que fuma 20 cigarros por dia dá 200 tragadas, um usuário de cigarro eletrônico dá, em média, 773 tragadas por dia.
O estudo mostrou também que mais de 60% dos usuários de vape já tentaram parar de usar por conta própria. Entre aqueles com alta dependência, essa taxa sobe para 80%. Entretanto, não houve sucesso na tentativa.
"Eles ficam presos na dependência ", pontua a cardiologista.
Mesmo assim, 50% dizem que querem parar de usar cigarros eletrônicos no futuro e 30%, talvez.
Também houve uma forte associação entre o uso de cigarros eletrônicos e problemas de saúde mental, em especial ansiedade e depressão. Entre aqueles com maior concentração de nicotina no sangue, a prevalência dessas condições foi mais alta, o que, segundo Scholz, indica que essas pessoas sofrem alterações de humor com mais frequência.
A nicotina atua no circuito de recompensas do cérebro, liberando o neurotransmissor dopamina, que provocar sensação de bem-estar, e serotonina, responsável pela sensação de felicidade. Por isso, a associação entre tabagismo e saúde mental não é novidade na literatura. Mas isso fica ainda mais evidente no cigarro eletrônico. No entanto, ainda não está claro o que vem primeiro, se o tabagismo ou a condição de saúde mental.
Danos à saúde cardiovascular
Outro estudo, apresentado na reunião anual Sociedade Radiológica da América do Norte deste ano, mostrou que o vapor produzido pelo cigarro eletrônico provoca efeitos imediatos na saúde vascular e também diminui o nível de oxigênio no corpo mesmo sem a presença da nicotina.
Foram analisados 31 fumantes e usuários de vape saudáveis com idades entre 21 e 49 anos foram incluídos até o momento. Em três sessões separadas, os participantes do estudo foram submetidos a dois exames de ressonância magnética, um antes e um depois de fumarem.
Além disso, os cientistas coletaram informações sobre a circulação do oxigênio e do sangue em algumas regiões do corpo (como cérebro e artérias) desses participantes. E por fim, compararam os dados obtidos com os de 10 não fumantes e não usuários de vape com idades entre 21 e 33 anos.
Os pesquisadores descobriram que após a inalação de cada tipo de vaporização ou fumo, houve uma diminuição significativa na velocidade do fluxo sanguíneo em repouso na artéria femoral superficial. Esta artéria corre ao longo da coxa e fornece sangue oxigenado para toda a parte inferior do corpo.
A diminuição da função vascular foi mais pronunciada após a inalação de cigarros eletrônicos contendo nicotina, seguido por cigarros eletrônicos sem nicotina. Além disso, foi observada uma diminuição imediata na captação de oxigênio pelos pulmões após o uso do vape, independentemente de conterem ou não nicotina.
Os dados são importantes porque muitos usuários acreditam que os cigarros eletrônicos não contêm nenhum dos produtos nocivos, como radicais livres, encontrados em cigarros de tabaco regulares, porque não há combustão envolvida.
"Este estudo serve para destacar os efeitos agudos que fumar e vaporizar podem ter em uma infinidade de leitos vasculares no corpo humano. Se o consumo agudo de um cigarro eletrônico pode ter um efeito que se manifesta imediatamente no nível dos vasos, é concebível que o uso crônico possa causar doença vascular", ressalta a autora principal do estudo, Marianne Nabbout, da Universidade do Arkansas, nos Estados Unidos, em comunicado.