"Nosso relacionamento com a comida é pobre, temos de sentar, tirar o celular", diz psiquiatra
Publicação 'Terapia na Cozinha' mergulha na experiência do psiquiatra Arthur Guerra e a chef de cozinha Morena Leite
O psiquiatra Arthur Guerra e a chef Morena Leite descobriram em conversas despretensiosas que tinham algo em comum: o prazer em falar sobre comida. Arthur, menos habilidoso nos assuntos de garfo e faca, desbravou já adulto suas primeiras receitas na cozinha — mas reconhece que estar atento às refeições é um trunfo nos tratamentos psiquiátricos que orienta. Morena, por sua vez, nasceu nos arredores do restaurante Capim Santo, inaugurado por seus pais Sandra Marques e Nando Leite, em Trancoso (BA) e tornou-se um dos principais nomes da gastronomia brasileira.
Apesar do tino para a cozinha, a baiana reconhece que por muitos anos nutriu certa ansiedade em relação a provar sabores diferenciados ou, então, exagerar a ponto de ganhar muito peso.
Juntos, Arthur e Morena acabam de lançar o livro “Terapia na Cozinha” (Editora Sextante) no qual destrincham sua relação com a comida e dão pistas de como viver melhor ao redor da mesa. Em cada capítulo, ainda há dicas de receitas com a assinatura de Morena e alguns causos de consultório vividos por Arthur.
Ao Globo, eles falaram sobre como potencializar as relações familiares por meio das refeições, dos problemas da dieta contemporânea e, afinal, por onde começar quando há pouca habilidade com as receitas. Confira:
É sabido que uma boa dieta é fundamental para a saúde em dia. Mas, além dos nutrientes, como as refeições podem nos ajudar a ter uma vida mais equilibrada?
Arthur Guerra: As refeições do dia podem ser feitas de forma automática, simples, sem nenhuma emoção. Mas também podem ser feitas dentro de um outro contexto, onde há fatores que são importantes para a saúde mental, como o cuidado. O cozinhar como forma de cuidar de alguém, é uma demonstração do papel de mãe, pai, marido colaborador. E também quando você cozinha com o tempero do amor, a comida tem outro sabor. Não tem só gosto físico, tem gosto emocional. Há pessoas, por exemplo, que têm fome de carinho o tempo todo.
Chef, você fala abertamente no livro sobre sua dificuldade de cozinhar apenas para você e não para os outros. Como funciona isso?
Morena Leite: Não venci ainda o desafio, não consigo cozinhar para mim sozinha. Cozinhar, na minha opinião, significa cuidar de alguém, nutrir alguém. Sejam essas pessoas minhas filhas, um amigo. Eu não tenho esse autocuidado, esse carinho, comigo. Hoje em dia eu já tenho prazer no sabor da comida, antes eu sentia medo. Gosto de comer. Mas comer para mim significa compartilhar e não exatamente me nutrir fisicamente. Comer para mim não é como respirar, eu estou sempre pensando enquanto faço. É algo como escrever com a outra mão (que você não está habituado), exige concentração.
O senhor trata dependentes químicos e do álcool. Como a dieta se relaciona com esse tipo de quadro?
A.G.: Quando a pessoa tem dependência, a droga, o álcool, a cocaína, a maconha ou o remédio não são usados para ter prazer, mas para evitar o desprazer de sua falta. A ausência da droga traz uma sensação ruim e o uso vem como um alívio desse desprazer. Isso não é resolvido, mas a pessoa consegue seguir por mais quatro, seis ou até oito horas sem usar de novo. Nisso, ela não olha para mais nada. A vida sexual, afetiva, trabalho, alimentação, tudo fica secundário. A pessoa perde o paladar, mas não é o paladar sensorial, é o paladar afetivo. A fome dela não é pela comida, a fome dela é para ter a droga o mais rápido possível. Então a dieta acaba sendo só uma muleta, tanto faz. Há quem ganhe e quem perca peso. Quando a pessoa chega ao meu consultório eu faço um raio-x da sua vida. E eu vou buscar alimentação. E pergunto: O que você come? A que horas? Quanto você come? Quem faz a sua comida? Falo para ter cuidado com esses alimentos ultraprocessados, essas coisas que são refrigeradas o tempo todo. E falo para comer frutas e beber água. Faço esse tipo de controle.
Cozinhar é terapêutico?
M.L.: Eu acho que todas as escolas têm que ter aulas sobre alimentação. Eu gosto muito de ir pra cozinha com as minhas filhas, observar com elas a transformação do alimento. A minha filha de quatro anos viu um feijão nascer, ficou alucinada com uma cenoura. E aí depois é possível pegar essa mesma cenoura e fazer um purê, ou ralada. É possível observar o a sua versatilidade em que ela se transforma com cortes, com as temperaturas. É uma alquimia E mexe com as nossas emoções. O momento da refeição comida é um ritual, que muda aonde você come, como você come, com quem você come
Já viu alguém ser transformado pelo prazer pela cozinha?
A.G: A cozinha está junto dos processos de transformação. Cozinhar, fazer algo pra si, para o parceira, ou os filhos e notar que está fazendo isso de forma saudável é um ponto nuclear para o tratamento de saúde ter sucesso. Se alimentar bem contamina de maneira positiva quem está no seu entorno, dos amigos aos inimigos.
Como é possível potencializar a experiência da refeição?
M.L.: Gosto de arrumar a mesa. Não gosto de comer no sofá nem em recipientes de plástico ou papelão. É importante deixar tudo organizado, colocar em travessas, mesmo que tenhamos que lavar tudo depois. Aqui em casa é tudo um pouco rigoroso, não deixo falar ao telefone nem assistir desenhos na mesa. Esse é o momento em que nós fortalecemos nossos vínculos. Para minha filha de 15 anos é igual. Para ela não existe não arrumar a mesa. É uma questão de hábito e eu passei isso para elas.
Estamos nos relacionando de maneira doente com a comida?
A.G: O nosso relacionamento com a comida é, na minha visão, pobre, rápido e muitas vezes pouco nutritivo. Cansei de ver pessoas fazendo reuniões e almoçando ao mesmo tempo. É importante parar, sentar, tirar o celular da mesa, deixá-lo no escritório, fazer a comida, conversar, falar sobre o que foi o dia, o que você vai fazer amanhã. Até se queixar às vezes, pode ter uma briguinha ou outra, faz parte. Mas eu acho que essa ligação, essa troca, ela precisa ser reconquistada.
M.L.: Algumas pessoas sentem culpa quando exageram, quando perdem o controle. No meu caso, quando como um baita bolo de chocolate, uma rabada maravilhosa ou um vegetal incrível eu fico mega feliz. Mas me sinto mal quando como um salgadinho no avião, um ultraprocessado. Quando eu como direito eu me sinto capitã da minha alma.
Como fazer as pazes com a comida, quando a pessoa tem um histórico de excessos?
M.L.: Acho que a maturidade ajuda a gente a se conhecer e entender nossos gatilhos, entender o que faz a gente comer mais. A autoconsciência ajuda muito Para mim, beber muita água e bebidas quentes ajuda muito quando estou mais ansiosa. Eu parei de beliscar, comecei a comer direito (em refeições mais completas). Penso que o caminho está em comer de tudo e comer pouco. É preciso conhecer nosso próprio metabolismo. Hoje sei que minha digestão é lenta, então preciso de tempo. A hora em que vou comer, estou quase rezando. Presto atenção.
Quais os sinais de alerta de que nossa relação com a comida não está bem?
A.G: Um alerta é perceber que quando seu comportamento de comer faz você ou os outros sofrerem, por se preocuparem com você. Independente da quantidade, do que você com ou da frequência. O aumento constante de peso é também um sinal. Não é preciso que os números da balança caiam sempre, mas se não parar de subir, algo está errado. Esse sofrimento pode ser uma culpa, uma angústia. Pode ser necessário consultar um profissional. E não precisa ser um psiquiatra, pode ser um endocrinologista ou um clínico.
E quem não sabe nada sobre cozinha e como preparar uma refeição, como pode começar? M.L.: Procure nas redes sociais os chefs que você gosta. Vá ao supermercado, explore opções. Assistir a vídeos de receitas também ajuda. Uma boa receita para quem está começando é o risoto e suas variáveis. Cada um consegue dar seu toque.