Teses de defesa de Bolsonaro e outros indiciados pela trama golpista são rebatidas pela investigação
Depoimentos, documentos e trocas de mensagens refutam argumentos apresentados por alvos de relatório
As teses de defesa apresentadas até agora pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e por parte dos outros indiciados por uma suposta tentativa golpe de Estado são rebatidas por elementos que já foram reunidos na investigação da Polícia Federal (PF). Em notas oficiais e entrevistas, os advogados e os próprios alvos tentam refutar pontos da investigação. Essas manifestações, contudo, entram em choque com as provas reunidas pela PF, que incluem depoimentos, documentos apreendidos e trocas de mensagens, entre outros.
A investigação foi concluída na semana passada pela PF. Agora, a Procuradoria-Geral da República (PGR) decidirá se apresenta uma denúncia. Caso a acusação seja formalizada, os investigados poderão apresentar uma resposta oficial, antes de a acusação ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Apontado pela PF como alguém que "planejou, atuou e teve domínio" do plano golpista, Bolsonaro tem buscado minimizar as suspeitas. No sábado, por exemplo, o ex-presidente questionou se o golpe seria dado "com um general da reserva e quatro oficiais superiores" e perguntou: "Cadê a tropa? Cadê as Forças Armadas?".
Entretanto, um dos principais pontos da investigação é o fato do ex-presidente ter apresentado um decreto golpista aos comandantes das Forças Armadas — que tinham o controle de todas as tropas militares. Os comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, confirmaram à PF que receberam a proposta e afirmaram que o chefe da Marinha, Almir Garnier Santos, se colocou à disposição do então presidente.
A PF afirma que a recusa de Freire Gomes e Baptista Junior foi decisiva para o golpe de Estado não acontecer, assim como da maioria do Alto Comando do Exército.
"A consumação do golpe de Estado perpetrado pela organização criminosa não ocorreu, apesar da continuidade dos atos para conclusão da ruptura institucional, por circunstâncias alheias à vontade do então presidente da República Jair Bolsonaro, no caso, a posição inequívoca, dos comandantes do Exército e da Aeronáutica, general de Exército Freire Gomes e Tenente-Brigadeiro do Ar Carlos de Almeida Baptista Júnior, e da maioria do Alto Comando do Exército", diz o relatório final.
Bolsonaro admite a reunião com os comandantes, mas afirma que discutiu apenas mecanismos previstos na Constituição, como um possível estado de defesa ou de sítio. Esses mecanismos, contudo, não são previstos para reverter o resultado de uma eleição presidencial, como foi estudado.
O estado de defesa, por exemplo, pode ser aplicado para conter "grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza". Já o estado de sítio deve ser acionado contra "declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira" ou "comoção grave de repercussão nacional".
Para André Perecmanis, professor de Direito da PUC-Rio, houve tentativa de dar uma "roupagem jurídica" para um ato que seria "flagrantemente ilegal":
"Todas as alegações são nada mais do que uma tentativa de dar uma roupagem jurídica para um ato flagrantemente ilegal, porque não havia hipótese de decretação de estado de sítio, as Forças Armadas não são Poder Moderador. Nada daquilo não tinha base jurídica".
Bolsonaro também tem reforçado as críticas contra o relator do caso no STF, Alexandre de Moraes, e sua defesa já pediu o impedimento do ministro nessa investigação, já que os fatos apurados incluem um plano para sequestrar o magistrado.
Perecmanis explica, contudo, que o impedimento não se aplica neste caso porque Moraes não era a vítima dos atos, que faziam parte de um conjunto maior de ataques à democracia. Apesar de citar os planos de morte do ministro e de outras autoridades como parte da ação da suposta organização criminosa, a PF não fez um indiciamento de crimes específicos sobre esse fato, como tentativa de homicídio.
"Nesse caso específico, eu não vejo impedimento. Porque ele não era a vítima do crime. A vítima do crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, de golpe de Estado, não é uma pessoa, é a sociedade", avalia o professor da PUC-Rio.
O ex-ministro Walter Braga Netto, que a PF classifica como uma das figuras centrais do planejamento, afirmou no sábado que "nunca se tratou de golpe, e muito menos de plano de assassinar alguém". A PF aponta, contudo, que foi feita uma reunião em sua casa para discutir questões do plano. O tenente-coronel Mauro Cid confirmou que a reunião foi na casa de Braga Netto, e mensagens mostram que apenas militares das Forças Especiais (FE), conhecidos como "kids pretos", participaram.
Mensagem também mostram que Braga Netto determinou ataques aos comandantes do Exército e da Aeronáutica — que a investigação mostra que não concordaram com o golpe — e elogios ao comandante da Marinha, que teria aderido. Em outra mensagem, no dia 27 de dezembro, Braga Netto ainda fala na possibilidade de continuar no governo, ao responder uma pergunta sobre qual órgão poderia receber um currículo. "Se continuarmos poderia enviar para a Sec Geral", escreveu ele, a quatro dias do fim do governo Bolsonaro.
A defesa de Garnier limitou-se a dizer que "reitera a inocência do investigado" e não comentou os depoimentos dos outros dois comandantes que confirmaram que se se colocou à disposição do golpe.
O influenciador e economista Paulo Figueiredo Filho disse que a conduta que lhe é atribuída é a "de reportar, com precisão, os acontecimentos envolvendo o alto comando do Exército brasileiro". A investigação, no entanto, mostra que ele insuflou os militares a aderirem ao golpe. Depois, passou a atacar os oficiais que não concordavam com o plano, como os ex-comandantes Freire Gomes e Baptista Junior, que relataram à PF terem sido alvos de ofensas.
Ex-assessor de Bolsonaro, Marcelo Câmara afirmou que o indiciamento "não se sustenta diante da ausência de qualquer elemento concreto que vincule" ele às condutas investigadas. A PF reuniu diversas mensagens que mostram Câmara participando do monitoramento do ministro Alexandre de Moraes. Ele sabia, por exemplo, detalhes da agenda e de deslocamentos do ministro. Além disso, em um diálogo com Mauro Cid, ele demonstrou ter conhecimento da minuta golpista que acabou sendo apreendida na casa de Anderson Torres.