Ex-ministros de Saúde defendem criação de autoridade federal para combate a próximas pandemias
Encontro em São Paulo reuniu oito titulares da pasta em outras gestões junto da ocupante atual do cargo para debater desafios no enfrentamento de emergências sanitárias
O Brasil possui bons exemplos de sucesso no combate a pandemias nas últimas décadas, mas o fracasso do país frente à Covid-19 evidenciou que é preciso fortalecer a política de estado nessa área, o que inclui um novo arcabouço legal, afirmaram oito ex-ministros de Saúde reunidos nesta segunda-feira com a titular atual do cargo, Nisia Trindade. Uma sugestão partindo de mais de um participante do encontro foi a criação de um órgão autônomo para gerir pandemias.
O evento, patrocinado pelo Instituto Todos pela Saúde, reuniu os ex-ministros Alceni Guerra (governo Collor), Barjas Negri (FHC), Marcelo Castro (Dilma), Luiz Henrique Mandetta (Bolsonaro), além de João Gomes Temporão, Saraiva Felipe, Agenor Álvares e Humberto Costa (de diferentes mandatos Lula). Cada um relatou as dificuldades que teve em diferentes epidemias.
A insegurança jurídica para instituir alguns tipos de medidas emergenciais, como quarentenas e fechamento de fronteiras, foi relatada como desafio por alguns dos presentes. Para concentrar a regulamentação, uma das soluções ventiladas na ocasião foi a fundação de uma nova instituição, nos moldes dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, com autoridade para tomar medidas necessárias em calamidades sanitárias.
Um problema hoje é que a lei que rege o tema atualmente é da década de 1940, e a legislação suplementar criada após a chegada da Covid-19 caducou assim que a OMS decretou o fim da emergência sanitária global em 2023.
Entre os ministros presentes que pediram a criação de um órgão novo estão dois com mandato no Legislativo, os senadores Humberto Costa (PT-PE) e Marcelo Castro (MDB-PI). O primeiro deles alertou que, com a mudança climática e outras transformações globais, a eclosão de epidemias tem sido mais frequente neste século do que no anterior.
— Fui ministro de 2003 a 2005, quando tínhamos na época um acúmulo do debate sobre vigilância epidemiológica, e eu tive a oportunidade de ter sido o ministro que criou a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) — afirmou. — Mas entendo que vivemos hoje um momento em que precisamos dar um passo à frente nessa questão, para ter um órgão regulador com absoluta e total independência.
Com o Brasil tendo 2,7% da população mundial, mas quase 13% das mortes no mundo por Covid-19 nos dois anos críticos da pandemia, era um consenso entre todos os ministros presentes que o país fracassou contra o vírus. (O general Eduardo Pazuello, titular da pasta da Saúde durante o período, não foi convidado para o evento.)
Segundo Castro, que enfrentou como ministro a pandemia do vírus da zica em 2016, o ministério estava bem estruturado quando a Covid chegou em 2020, mas Bolsonaro demitiu seu primeiro ministro da Saúde, Mandetta, para depois atropelar a autoridade técnica da SVS, que é subordinada ao ministério.
— O Mandetta fez tudo o que deveria ser feito, obedecendo à ciência, mas nós sabemos das injunções políticas que aconteceram. O que foi feito depois da demissão dele no ministério da Saúde de Bolsonaro foi a negação de todo o aprendizado que nós tínhamos tido até então — afirmou Castro, que apoia a criação do órgão autônomo. — Acho que nós deveríamos lançar o mais rápido possível uma iniciativa de criar no Brasil um centro a exemplo dos CDC que existem nos EUA.
Mandetta afirmou no evento que o país precisa também de um arcabouço legal para ação do estado para períodos de emergência sanitária, porque o ministério não tem autonomia para tomar todas as medidas necessárias. Mesmo a lei temporária aprovada em 2020 para a pandemia tinha limitações no fluxo de verbas.
— Nós percebemos que o recurso previsto para emergência no orçamento não existia, e se existia era mínimo. Eu tive que pedir suplementação orçamentária até os ministros da economia e o congresso entenderem a gravidade do que estava se passando — conta o ex-ministro falando da dificuldade de fazer contratos, com o mercado de medicamentos e aparelhos médicos operando a preços absurdos. — O que nós fizemos foi antecipar os gastos, mudar a rubrica e esperei me darem a reposição no final do ano. Um problemaço que eu tive é que os técnicos do ministério não queriam assinar nada, sob ameaça de processo e acusações. Foi um apagão de caneta. Em todo o período que fiquei lá, fui eu quem assinou tudo pessoalmente.
A atual ministra, Nísia Trindade, que enfrenta agora a pior epidemia de dengue da história do país, comentou as sugestões de mudança legal e estrutural na Saúde. Disse preferir que a preparação para eventuais novas pandemias se dê na forma de um programa de ação, mas não descartou de todo as sugestões.
— Eu já tive ocasião de me manifestar em relação à proposta que está colocada em aberto para a discussão, ou seja, de um centro para prevenção e controle de doenças. Mais do que uma nova estrutura, nós precisamos de um fortalecimento da governança, e um programa de prevenção, preparação e resposta para emergência teria que dar conta dessa governança — afirmou. — A governança é o desafio, mas com isso não quero dizer que o ministério tem tudo aquilo que precisa para situações de emergência, muito pelo contrário.
Outros ministros presentes no evento desta segunda-feira também expuseram as dificuldades em ciclos de epidemias graves que enfrentaram, incluindo o da Aids na década de 1990 (gestão Alceni Guerra) e o da gripe H1N1 em 2009 (gestão Temporão). Alguns acenaram positivamente à proposta de um CDC brasileiro como forma de elevar as "políticas de governo" na área de vigilância epidemiológica a "políticas de estado".
Os depoimentos dos ministros e outros gestores de saúde presentes ao evento em São Paulo serão consolidados em um documento que o ITPS preparou para encaminhar aos presentes, incluindo os propositores da ideia no Senado, afirma o instituto.