Soldados da Ucrânia recebem ordem para resistir em território russo de Kursk até posse de Trump
Kiev e Moscou tentam exercer controle sobre o máximo de território possível antes que mudanças políticas possam avançar conversas sobre negociações; militares ucranianos criticam estratégias e prioridades
Enquanto a guerra aérea entre Rússia e Ucrânia, com ameaças trocadas após o disparo de mísseis de longo alcance ocidentais por Kiev e mísseis com capacidade nuclear por Moscou, orienta a discussão política sobre o conflito nas últimas semanas, soldados envolvidos nos combates na linha de frente enfrentam uma rotina que beira a exaustão. Longe dos centros de decisão envolvidos nas conversas de paz, soldados ucranianos afirmam ter recebido ordens para proteger o terreno conquistado em Kursk até o retorno de Donald Trump à Casa Branca, em meio às expectativas de que negociações de paz possam ser encaminhadas.
As últimas movimentações e depoimentos de quem vive o dia a dia na frente de batalha demonstram que há uma corrida russa para reconquistar terreno, enquanto os ucranianos lutam para manter o que já conquistaram, no extremo leste da Ucrânia e em Kursk — território russo invadido pelo Exército de Kiev durante uma ofensiva em agosto. A ideia é de que, caso as mudanças políticas façam as negociações avançarem, cada centímetro conquistado será reivindicado ou usado como barganha.
"A principal tarefa que enfrentamos é manter o máximo de território até a posse de Trump e o início das negociações, para trocá-lo por algo mais tarde. Ninguém sabe o quê", afirmou um militar ucraniano que está servindo em Kursk, em mensagens trocadas com a reportagem da rede britânica BBC. "Tenho certeza de que ele [Putin] quer nos expulsar até 20 de janeiro".
A situação em Kursk é descrita como extremamente cansativa. Soldados ouvidos pela BBC e pela rede americana CNN afirmaram que o rodízio no front é quase inexistente, que há dificuldade de suprir as necessidades por tropas e alguns mantimentos, e que a falta de perspectiva e de um objetivo claro da invasão é um fator de desmotivação, enquanto hordas de forças russas se revezam em ataques, entre os disparos de artilharia.
— Eu tenho a impressão de que [os russos] têm gente ilimitadas — disse um comandante de unidade ouvido pela CNN em Sumy, na Ucrânia, horas após um embate em Kursk. — Eles enviam grupos, e quase ninguém permanece vivo. E no dia seguinte, outros grupos vão novamente. Os que vão depois, ao que parece, não sabem o que aconteceu com os anteriores.
Os ataques repetitivos e com soldados com aparentemente pouco conhecimento sobre a situação no terreno e sem o equipamento adequado, descrito pelo militar ucraniano, foi utilizado por Moscou em outros momentos da guerra. A tática foi descrita pelas tropas envolvidas nos combates em Bakhmut, onde o grupo mercenário Wagner atuou em 2023.
Independente da tática e do custo cobrado, a estratégia parece estar dando resultado. Uma análise da AFP, feita com base em dados coletados pelo Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês), aponta que as tropas russas conquistaram mais território em novembro do que em qualquer outro mês desde março de 2022, no começo do conflito. Em Kursk, particularmente, o mesmo instituto aponta que as forças ucranianas controlam apenas 40% do território total que chegaram a invadir.
Divergências entre a tropa e o comando
Embora estejam engajados nos combates contra os russos, os depoimentos colhidos pelos veículos internacionais de imprensa demonstram que as forças ucranianas envolvidas diretamente na luta em Kursk têm opiniões diferentes sobre as escolhas e prioridades do comando militar em Kiev. As críticas ou dúvidas cobrem uma série de temas, desde a necessidade de atacar o território russo à real presença de soldados norte-coreanos no front.
“Não vi nem ouvi nada sobre [norte] coreanos, vivos ou mortos”, afirmou um outro militar que trocou mensagens com a BBC, enquanto o primeiro ironizou a situação, dizendo que seria difícil encontrar os militares asiáticos em Kursk "especialmente se eles não estiverem aqui".
Enquanto o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia cobrou nesta terça-feira, antes do início de uma reunião da Otan em Bruxelas, pelo envio de ao menos 20 novos sistemas de defesa antiaérea, enquanto o governo de Volodymyr Zelensky continua pressionando por uma adesão do país à Otan, depoimentos de soldados no front mostram que a preocupação com a guerra aérea é bem menor.
"Não falamos sobre mísseis", disse um outro soldado ouvido pela BBC. "Nos bunkers, falamos sobre família e rodízio [no front]. Sobre coisas simples.
Alguns chegam mais longe em suas críticas, e acreditam que apesar da estratégia traçada para a invasão em Kursk — para criar um incômodo para Putin em seu próprio território e deslocar tropas russas do leste ucraniano para defender o próprio país — foi um erro.
"Nosso lugar deveria ser lá [no leste da Ucrânia], não aqui na terra de outra pessoa" disse um dos militares consultados pela BBC. "Não precisamos dessas florestas de Kursk, nas quais deixamos tantos camaradas". (Com AFP e NYT)