Lei marcial

Declaração de lei marcial na Coreia do Sul expôs o isolamento de um presidente impopular; entenda

Decisão foi tomada pelo núcleo próximo de Yoon Suk-yeol, e pegou até assessores de surpresa; aliados votaram a favor da derrubada da medida.

Presidente Yoon Suk-yeol - Reprodução/Internet

Ao declarar a lei marcial nesta terça-feira, uma medida destinada a enfrentar ameaças existenciais à sociedade sul-coreana, o presidente Yoon Suk-yeol deu um dos passos mais cruciais não apenas de seu governo, mas da vida política da Coreia do Sul desde a redemocratização, no anos 1980.

A ordem foi derrubada pela Assembleia Nacional, inclusive com votos de seu próprio partido, e ao impopular presidente restou apenas derrubar a própria medida, que havia jogado uma das maiores economias do mundo em nova e grave crise política

Eram quase 23 horas quando Yoon foi à TV declarar lei marcial, afirmando que tomava a decisão para “para erradicar as forças pró-Coreia do Norte e proteger a ordem constitucional livre”.

"Através desta lei marcial de emergência, reconstruiremos e protegeremos a República Livre da Coreia, que está caindo no abismo da ruína. Para este fim, erradicarei definitivamente as forças anti-estatais e os culpados da ruína. do país que cometeram atos malignos até agora ", afirmou Yoon.

— Esta é uma medida inevitável para garantir a liberdade e segurança do povo e a sustentabilidade do país contra as ações das forças anti-estatais que procuram derrubar o sistema.

Yoon não detalhou as medidas que seriam adotadas, mas o chefe do Estado-Maior do Exército, Park An-soo, encarregado pela execução da lei marcial, anunciou em seguida que todas atividades políticas estariam suspensas — e isso incluía, além de greves e protestos, a própria Assembleia Nacional, que tem o poder de reverter a declaração. Havia rumores de que o Legislativo seria dissolvido e novas eleições convocadas.

Soldados tentaram bloquear a entrada da Assembleia, impedindo que os parlamentares acessassem o plenário, mas 190 conseguiram passar e votaram contra Yoon, sendo que 172 da oposição e 18 de sua própria sigla, o Partido do Poder Popular (PPP).

De acordo com a Constituição, para que a lei marcial seja derrubada, a moção precisa ser aprovada pela maioria dos 300 parlamentares. Nas portas, funcionários colocaram estofados e mesas para tentar resistir às tropas, que portavam armas de fogo, mas sem os carregadores.

"Esta declaração de lei marcial perdeu seu efeito prático devido à decisão da Assembleia Nacional de suspender a lei marcial. Portanto, é ilegal para os militares e a polícia exercerem o poder público com base na lei marcial", afirmou o líder do PPP, Han Dong-hoon, em entrevista coletiva.

— Como partido no poder, lamentamos muito que tal situação tenha ocorrido.

Lee Jae-myung, líder do Partido Democrático e candidato derrotado por Yoon na eleição presidencial de março de 2022, chamou a declaração de lei marcial de “ilegal e inconstitucional”, e se dirigiu aos militares, que naquele momento tinham deixado o prédio da Assembleia Nacional, mas ainda eram vistos em ruas próximas.

— A ordem presidencial após a declaração ilegal da lei marcial é uma ordem que viola a Constituição e a lei, e segui-la é em si ilegal — afirmou Lee, pedindo que as tropas retornassem aos quartéis.

— Quem comanda vocês não é a pessoa que declarou a lei marcial ilegal e a lei marcial inconstitucional e inválida. Vocês devem seguir as ordens do povo soberano.

Foram necessárias algumas horas até que Yoon se pronunciasse, agora para afirmar aos sul-coreanos que derrubaria o próprio decreto, e que “as tropas destacadas para assuntos de lei marcial foram retiradas”.

Mesmo após a votação na Assembleia, o comando militar afirmou que a ordem seguiria em vigor até que o presidente anunciasse sua suspensão. Mesmo assim, do lado de fora da Assembleia Nacional uma multidão se reuniu em apoio aos parlamentares e defendendo a renúncia imediata de um dos presidentes mais impopulares da história recente da Coreia.

Eleito em uma votação decidida por menos de um ponto percentual de diferença, Yoon, um ex-promotor e outsider político, desde o início do mandato contou com uma oposição ferrenha do Partido Democrático, que barrou muitas de duas iniciativas parlamentares — após as eleições de abril, quando os oposicionistas mantiveram a maioria na Casa, o presidente passou a ser apelidado de “pato manco”, um político que ainda tem tempo de mandato à frente mas que tem poucos poderes na mão.

Além da falta de resultados de governo, Yoon, que na campanha ficou conhecido como um “campeão das gafes”, enfrentou uma quantidade considerável de escândalos e polêmicas.

Em outubro de 2022, meses depois de tomar posse, 159 pessoas morreram pisoteadas no popular bairro de Itaewon, em Seul, durante uma comemoração do Dia das Bruxas. Seu governo foi acusado de não fazer o suficiente para apoiar as famílias das vítimas, e Yoon criticado por não pedir desculpas à nação. Em janeiro deste ano. ele vetou uma lei que autorizava uma nova investigação da tragédia.

Em fevereiro do ano passado, o Parlamento aprovou o impeachment do então ministro do Interior, Lee Sang-min, afirmando que ele deveria assumir a responsabilidade pelas mortes, mas a decisão foi revertida em julho do mesmo ano pela Justiça.

No pronunciamento desta terça-feira, Yoon criticou os pedidos de afastamento de integrantes de seu governo, afirmando que “ é uma situação que não é apenas sem precedentes em qualquer país do mundo, mas também completamente sem precedentes desde a fundação do nosso país”.

A impopularidade não vem apenas de seu Gabinete. A primeira-dama, Kimm Keon-hee, que antes da eleição presidencial foi acusada de plágio acadêmico, se envolveu em escândalos relacionados à manipulação de ações na bolsa de valores — os promotores decidiram, em outubro, não indiciá-la — e ao recebimento de uma bolsa Dior avaliada em 3 milhões de wones, ou R$ 12,8 mil.

No mês passado, ele foi à TV e, em pronunciamento pediu desculpas pela conduta da mulher, que “deveria ter sido melhor”, mas afirmou que ela foi “demonizada em excesso” e que muitas das alegações foram “exageradas”.

As explicações não convenceram muita gente. Segundo uma pesquisa do Instituto Gallup, divulgada na semana passada, apenas 19% dos sul-coreanos aprovavam seu governo.

Entre os principais motivos para a reprovação estavam os escândalos, a economia e a diplomacia de Yoon, marcada pelo forte antagonismo à Coreia do Norte. Um site que recolhia assinaturas pedindo seu impeachment chegou a sair do ar em vários momentos do ano por causa do elevado número de acessos.

Ainda não está claro qual será o destino de Yoon Suk-yeol após a noite de terça-feira. Entre os parlamentares, alguns já expressam abertamente o desejo de incluir o nome do atual presidente na lista de chefes de Estado do país que sofreram impeachment — antes dele, Roh Moo-hyun, em 2004, e Park Geun-hye, em 2016, deixaram o posto dessa forma. Segundo a agência Yonhap, a maioria de seus assessores não sabia dos planos, e disseram tomar conhecimento deles através da imprensa, em um sinal de como a decisão foi tomada por um círculo restrito do presidente.

Contudo, ao se agarrar a um mecanismo que não era usado desde a ditadura sul-coreana, Yoon manda sinais que foram interpretados, até mesmo entre seus aliados, como de desafio à própria democracia. Na última vez em que a lei marcial foi decretada, após o assassinato do ditador Park Chung-hee, em 1979, a Coreia do Sul viveu um período de violência estatal, que teve no Massacre de Gwangju, em 1980, um de seus episódios mais sombrios.

Quando ainda era candidato à Presidência, Yoon fez, em 2021, comentários vistos como elogiosos ao ditador Chun Doo-hwan, que comandou o país durante os tempos de repressão nos anos 1980, e que ordenou o ataque aos estudantes em Gwangju. Ele precisou se desculpar pouco depois.