ARGENTINA

Em um ano, Milei teve bons resultados fiscais, apesar de maior pobreza

Ajuste severo afetou educação, saúde e programas sociais, mas atores econômicos estão esperançosos de que país vai melhorar

Javier Milei, presidente da Argentina - Alejandro Pagni/ AFP

O presidente da Argentina, Javier Milei, completa um ano de mandato nesta terça-feira sustentado por dois pilares essenciais, um deles crucial para sua vitória nas eleições de 2023: bons resultados macroeconômicos, que animaram os mercados, organismos internacionais e melhoraram o ambiente de negócios; e a aversão de grande parte dos argentinos aos governos que o antecederam e, portanto, às principais lideranças da oposição.

Milei encerra o primeiro ano de governo com forte apoio popular, apesar do duríssimo ajuste fiscal implementado, que afetou áreas sensíveis como saúde, educação e alguns programas de ajuda social, entre outras. O horror ao passado continua sendo um sentimento predominante entre os argentinos e, junto a ele, convive a esperança por um futuro melhor, até agora representada pelo chefe de Estado.

 

A reportagem do Globo conversou com representantes do agronegócio, dos setores bancário, de turismo e industrial, e executivos de pequenas e médias empresas. Em todos os casos, os entrevistados elogiaram a recuperação da economia do ponto de vista macro e admitiram que a receita brutal de Milei — o maior ajuste em 60 anos — foi dolorosa, mas trouxe bons resultados. O primeiro ano foi superado com muito esforço, concordaram, acrescentando que o que mantém o respaldo expressivo ao governo é a esperança de que os sacrifícios trarão uma melhora nas condições de vida de todos os argentinos.

Pobres já são 52,9%
O indicador que contrasta com o panorama que devolveu o otimismo aos argentinos é o da pobreza, que atingiu 52,9% no primeiro semestre de 2024, frente a 40,1% do mesmo período de 2023. Na Argentina, a medição da pobreza realizada pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) é diferente da de outros países e usa como referência uma cesta básica estabelecida hoje em US$ 300 (R$ 1.800) . Quem não pode ter acesso a essa despesa é considerado pobre. Isso poderia explicar um percentual tão elevado, mas a realidade é que a pobreza crônica chegou para ficar no país, que hoje tem o indicador mais alto dos últimos 20 anos.

Tanto é assim que apoiadores de Milei não costumam falar em pobreza. Em conversas nas ruas de Buenos Aires, geralmente se ouvem expressões como “finalmente um louco está dando um jeito neste país”. Milei é hoje a única alternativa na qual a grande maioria dos argentinos ainda deposita sua confiança.

As pesquisas de opinião confirmam que a imagem positiva do presidente oscila entre 47% e 52%, uma das mais altas da América Latina. Os cortes orçamentários e o sufoco do dia a dia não impactaram negativamente na sua popularidade, segundo analistas, porque a oposição ao presidente é “a mesma de sempre”. Ou seja, é vista pela maioria dos argentinos como a responsável pela crise em que o país estava mergulhado quando o líder da extrema direita assumiu o poder.

Nem mesmo cortes orçamentários como o de 74% nos refeitórios populares — que recorreram à Justiça para exigir serem reincorporados aos programas de ajuda estatal e ganharam — afetaram o respaldo a Milei. Os protestos contra o governo arrefeceram de forma significativa, segundo fontes de movimentos sociais, porque parte do ajuste implicou menos dinheiro para as organizações e, com isso, menos recursos para organizar mobilizações. A serra elétrica de Milei fez cortes necessários, mas também alguns profundamente complexos, que acentuaram a crise social.

Diálogo com oposição
O presidente tem motivos para celebrar. Seu primeiro ano de governo se encerra com saldo positivo, e não apenas em matéria de superávit fiscal, uma das grandes conquistas de sua equipe econômica. Apesar de não ter maioria parlamentar, ele conseguiu aprovar importantes projetos no Congresso, graças ao apoio de aliados circunstanciais, a chamada “oposição pró-diálogo”. Dentro dessa oposição está, entre outros, o partido Pro, do ex-presidente Mauricio Macri, que mantém um vínculo tenso com Milei. Em conversas informais, congressistas do Pro admitem que “a relação com o governo é complexa” e que muitas vezes se sentem maltratados.

— Se isso não melhorar, nossa boa vontade poderia acabar e, com ela, a governabilidade que Milei garantiu ao país em 2024 — diz uma das fontes.

A articulação política do presidente é frágil, e é sustentada por ameaças. Em palavras de um deputado do Pro, “tudo tem limites”.

— Hoje, a oposição, com exceção do kirchnerismo, não tem alternativa a não ser apoiar Milei. O risco em termos de imagem é alto — afirma Carlos Fara, diretor da Fara e Associados, que acredita que o partido governista, A Liberdade Avança, é favorito para as legislativas de outubro de 2025. — O cenário poderia mudar se a economia começar a apresentar problemas. Milei é sempre uma grande incógnita.

A grande maioria dos argentinos, no entanto, quer acreditar que em 2025, ano em que os economistas projetam um crescimento entre 5% e 6%, a ainda tímida recuperação ganhe impulso. O ajuste fiscal, coluna vertebral do programa econômico, foi tolerado, sem grandes custos políticos.

— O ajuste afetou fortemente setores como os aposentados, as províncias, as obras públicas. Hoje, um trabalhador da construção continua apoiando o presidente, mas espera ter emprego em 2025 — diz o economista Hernán Letcher, diretor do Centro de Economia Política Argentina (Cepa). — Milei ganhou pela expectativa que causou. O problema será se ela for frustrada.

O empresário da construção Gerardo Fernández, presidente da Câmara das Pequenas e Médias Empresas do setor, teme que as boas notícias que todos esperam não cheguem.

— As obras públicas estão 100% paralisadas. Milei estabilizou a macroeconomia, mas agora precisa melhorar a micro. Passamos de um Estado onipresente a um ausente.

Segundo ele, algumas empresas de seu setor já estão iniciando processos de falência. As companhias esperam, como toda a indústria argentina, uma recuperação que permita a chegada de investimentos do exterior e ter mais acesso ao financiamento bancário. Alguns programas de estímulo locais como o Rigi, que oferece vantagens para projetos acima de US$ 200 milhões (R$ 1,2 bilhão), estão funcionando. Mas num país em que o sistema financeiro representa cerca de 0,12% do PIB, Milei precisa captar investimentos estrangeiros para alavancar um crescimento sólido.

— Milei cumpriu a estabilização da macroeconomia, agora precisamos que isso se transforme num processo de desenvolvimento econômico sustentável — aponta Daniel Funes de Rioja, presidente da União Industrial Argentina. — As empresas necessitam de reformas tributárias, trabalhistas, melhora tecnológica e acesso a financiamento.

‘Muito trabalho a fazer’
Já o presidente da Associação de Bancos Argentinos (Adeba), Javier Santiváñez, acredita que no primeiro ano de Milei, o país “avançou de forma notável, mas ainda resta muito trabalho a ser feito”.

— É preciso consolidar a estabilidade econômica e continuar melhorando o marco normativo do sistema financeiro. O sistema bancário tem uma posição sólida para ser protagonista da recuperação econômica da Argentina.

Na mesma sintonia está Gustavo Hani, presidente da Câmara Argentina de Turismo. Apesar de o setor amargar uma queda de 24% do número de visitantes internacionais em 2024, Hani acredita que “outra Argentina está nascendo, com um modelo que milhões de argentinos escolheram”. Uma Argentina mais cara, com preços muitas vezes superiores aos de países europeus, que, para ele, “será capaz de dar a volta por cima”.

— Hoje somos mais caros e precisaremos ser mais competitivos.

O setor agrícola, que no ano passado sofreu uma das maiores secas da História, “continua aguentando com esperança”, diz Daniel Pellegrina, consultor, produtor e ex-presidente da Sociedade Rural Argentina (SRA).

A expectativa é que, a partir de 2025, Milei comece a baixar a pressão tributária sobre um setor essencial para a economia.

— Não estamos bem, mas tampouco asfixiados. Se a economia se estabilizar, a inflação continuar baixa e os investimentos começarem a chegar, o agro vai viver uma grande transformação — aposta.