Amaurih Oliveira fala sobre "As Polacas", filme de João Jardim que estreia nesta quinta (12)
O ator baiano interpreta Isaac, subordinado do bordel que tem papel chave na narrativa
"As Polacas" chega às salas de cinema nesta quinta-feira (12). Dirigido por João Jardim ("Getúlio"), o filme explora um Brasil no início do século 20, 1917. Protagonizando o longa-metragem, Valentina Herszage ("Ainda Estou Aqui") vive Rebeca, polonesa recém-chegada ao Brasil após fugir da perseguição judia na Europa.
Em busca de seu marido e novas oportunidades no País, a personagem encontra o completo oposto. Se descobre viúva, e diante de sua vulnerabilidade, acaba dentro de uma grande rede de prostituição chefiada por Tzvi, interpretado por Caco Ciocler ("Unidade Básica").
Transgredindo suas próprias crenças, Rebeca encontra aliadas que se juntam a ela numa busca por liberdade. Amaurih Oliveira ("A Divisão") interpreta Isaac, subordinado de Tzvi.
Um dos únicos personagens masculinos com destaque na trama, Isaac se faz importante dentro da narrativa, apresentando empatia diante das mulheres traficadas, ao mesmo tempo que lida com conflitos que remetem ao seu passado.
Com sensibilidade, Amaurih conectou-se com as nuances centradas no personagem, reconhecendo sua responsabilidade ao encarar uma representação dentro de uma temática tão densa. Falando desde seus processos dentro da preparação para Isaac até a relevância do cinema diante de propostas como a de "As Polacas", o ator baiano conversou com a Folha de Pernambuco.
Confira a entrevista com Amaurih Oliveira:
Quais foram os primeiros contatos com seu personagem, o Isaac? Sendo um dos únicos personagens masculinos de destaque, o que você esperava do processo de viver ele?
Me encontrei com o diretor João Jardim e apresentei uma das cenas do do filme para ele. No dia seguinte, eu recebi o convite para viver o Isaac. Quando eu recebi o roteiro completo, eu tive a dimensão de quem era ele. Primeiro acho que é um personagem que exige uma uma aceitação de ambas as partes, tanto do Amaurih para viver o Isaac, quanto do Isaac para que a gente se comunique no lugar de aceitação. É difícil o trabalho que ele assume ali no bordel, de ser essa sombra do Tsvi, e aí pensei muito em como eu poderia trazer essa humanidade, a humanização do Isaac. Ele tenta contribuir com aquelas mulheres dentro da limitação dele, observando principalmente.
Como pontuou, de início já entendemos que existe ali uma empatia pelas mulheres. Mas ao mesmo tempo, observamos que existe uma dinâmica de subordinação com Tsvi. Foi difícil explorar essas nuances dentro do personagem e traduzir ele para a tela?
Acho que é exatamente isso, exatamente essa dualidade. Acho que não dá para ficar pensando muito em como traduzir esses aspectos, eu gosto da ideia de vivenciar o momento sabe? Acho que a gente teve uma preparação com com um profissional da área, que trouxe para a gente algumas técnicas assim de de trabalho mesmo de ator, mas acho que o sentimento que eu coloco para trazer essas nuances que você tá falando é o próprio roteiro, que já te dá um banquete de situações e de informações. Acho que quanto mais você mais você investir na sutileza, na delicadeza e sensibilidade, porque é um personagem que dá espaço para tudo isso.
E vejo como explícito esse lugar dele, de sensibilidade, do olhar para os outros personagens. Ele também é um escravizado do sistema ali naquela história, é um personagem negro dentro de uma estrutura em que ele está sombra de um personagem branco em uma facção criminosa. Então o ambiente ao seu redor já é conflitante, e ele não é ingênuo de não perceber. Ele sabe que ele também é um escravo, e nem gosto dessa palavra, mas ele também é uma vítima é sim.
E até a metade do filme, não sabemos sua história, de onde vem. Mas com aquele vislumbre do passado, seu nome cravado nas paredes das ruelas, se observa ali uma trajetória de vulnerabilidade social.
Totalmente. Ali você entende que é muita identificação. eu acho que ele luta contra isso também, seu passado e história, porque ele precisa e está trabalhando. O que mais gosto é que o Isaac não pega em nenhuma arma ao longo do filme, sabe? Ele poderia ser um funcionário de uma de uma facção criminosa, que agisse com atitudes de violência e ele não faz isso. A história não apresenta isso.
Você comentou ali no comecinho que existe uma relação de troca entre você, Amaurih, e o personagem Isaac. Como foi lidar com essa responsabilidade de viver esse papel? Porque ele se insere em uma história que é inspirada em vivências reais, né? São mulheres que existiram.
Então, eu tenho uma história com projetos baseados em fatos reais, por falar em história. Esse é o meu terceiro projeto do tipo, recentemente estive em em “Irmã Dulce”, que também é da da nossa produtora Migdal, em que eu era uma das crianças que foram cuidadas pela Irmã Dulce, lá na Bahia. E eu representava todas essas crianças reais. Fiz um outro filme chamado “A divisão”, que conta a história do de policiais que desvendaram alguns sequestros no Rio de Janeiro, também baseados em fatos reais. E este ano, chega “As Polacas”, e aí observo que querendo ou não, existe um lugar no real que abre muitas possibilidades. Mesmo que exista o concreto, eu gosto da liberdade poética do que podemos criar. Por exemplo, eu não conheci ninguém que trabalhou nesses bordéis, mas existiu a nossa vivência de preparação, de estudo do roteiro. Existe uma pesquisa, assistir, ler coisas, e assim vou colhendo algumas informações que me permitam ser livre para criar. Acho que o mais importante é tornar a história mais crível e verossímil.
Sobre essas obras e conteúdos que consumiu durante a preparação para o papel, existe alguma em específico que te tocou mais?
Não consigo lembrar de nada específico, mas assisti vídeos que falavam sobre o período histórico no qual essa organização criminosa mais atuou. E é importante lembrar também que é uma história que se passa 30 anos após a abolição da escravatura. Então eu tenho uma referência de um período em que os meus irmãos de cor ainda também estavam engatinhando numa sociedade que não nos oferecia muita coisa então. Me trouxe uma referência para os comportamentos do Isaac, justificando alguns deles.
Como já reforçamos aqui, “As Polacas” é uma narrativa centrada na experiência feminina, tem uma presença muito forte dessas mulheres. E foi um filme dirigido por um homem. Como foi para você, como homem, ser dirigido pelo João, e como você observou a dinâmica dele com o elenco feminino?
A visão do diretor conta muito. É importante e é radical para o que vai ser o filme, e acho que o João mandou bem. Ele tem um respeito muito grande pelo elenco dele, ele gosta de ator. Ele tinha uma troca maior com essas mulheres, realmente porque essas mulheres são foco central dessa história, né? E eu eu sempre percebi ele muito cuidadoso e atencioso. Até para vir falar comigo, ele tinha um certo dedo. E não como se não soubesse sobre certos assuntos ou meios de falar, mas queria saber o jeito correto de chegar e opinar sobre algo. A gente tá fazendo uma obra, e uma que possui cenas dificílimas de serem feitas, com uma demanda emocional e energética. Nossa cabeça dá uma enlouquecida, e o artista já é louco né? Não dá para fazer um filme desse em uma camada superficial, exige realmente um lugar de dedicação. Se você falar um pouco do João assim, eu já vi o filme As Quatro Sei lá talvez. Já vi o filme umas 4 vezes, e nesta quinta [na estreia], verei novamente
Falando na estreia desta quinta, o que você espera que os espectadores absorvam dessa história, na verdade das histórias, É um filme, mas com muita pluralidade pra se observar.
Eu acho que quando a gente acredita no trabalho que se faz, queremos que a história seja compreendida, que as pessoas entendam. E principalmente uma história como a de “As Polacas”, para que não se repita. Gosto quando os projetos que a gente se dispõe a fazer nos atravessam, atravessam nossa humanidade. E quando é diferente do “Vamos, dê uma risadinha aí”. Nada contra risadinha, o teatro é terapêutico. Mas é bom quando você consegue provocar reflexão. São tantos temas que “As Polacas” trabalham, a liberdade dessas mulheres, o empoderamento feminino, a não violência contra as mulheres e a não prostituição tráfico humano.
E principalmente temáticas que ainda nos tocam enquanto sociedade nos dias de hoje.
Isso, é algo extremamente presente. O filme inclusive traz um registro matemático de quantas pessoas ainda vivem no tráfico humano. Então acho que eu espero que primeiramente, as pessoas gostem do filme, e principalmente porque a gente tá num momento muito bacana do cinema nacional. Daqui a pouco vem “O Auto da Compadecida 2”, tem “Malu”. Quero que o cinema brasileiro continue nesse momento gostoso. Ainda tem o “Ainda Estou Aqui”, que por sinal a nossa queridíssima Valentina está no elenco, uma coincidência maravilhosa para a gente. Assistir esse filme numa sala de 400 lugares lotada, que traz um tema tão importante que foi a ditadura militar. Fico gelado só de pensar que algum dia isso possa se repetir. E acho que o cinema existe, a arte existe, para que se tenha um retrato do que já aconteceu, e possamos projetar um futuro melhor. Para não repetir o que trouxe sofrimento e destruição. Acho que a arte tem esse papel revolucionário na vida da gente.