A intolerância no mundo moderno como efeito derivado da desumanização
"Mais do que máquinas precisamos de humanidade.Mais do que inteligência, precisamos de afeto e ternura”
Charles Chaplin
Às vezes, com um rubor que me contagia e inquieta, justo pela abusada frequência do inusitado, assanho-me neste meu singelo ofício de cronista e observador da sociedade. Ao seguir com essa linha de raciocínio e mirar nos exageros que seguem por minimizar a sapiência humana, o que mais me parece tomar vulto - e de modo assustador - é o abuso de manifestações variadas e intensas de intolerâncias.
De fato, a sociedade moderna não previu o processo avassalador das transformações cíclicas, que gerou para o mundo hoje uma realidade bem diferente daquela de poucas décadas atrás. A perene construção de ambientes sociais cada vezes menos humanos que, certamente, pode ser explicado por um modelo educacional dissociado de tais valores, proporcionou um caminho mal traçado, que só fez dar passagem para tantos níveis de intolerância.
Para minha essência, constituída por uma formação racional, na qual me esforcei por traduzi-la sempre, de forma justa e humana, tornou-se inadmissível que pensamentos, sentimentos e comportamentos diferentes dos meus pares, pudessem merecer reações hostis, de típica intolerância. Confesso que, por mais que respeite opiniões, há em mim uma espécie de limite, no qual não consigo entender quem pensa e age como um intolerante.
Com esse modo de ser e encarar os desafios da vida, digo que meu patrimônio intelectual, que se fez fruto de tanto aprendizado, serviu-me para me fortalecer diante de ambientes de convivência social e de respeito aos pilares de uma legítima e real democracia.
Como bem disse o genial Chaplin, que pus acima em epígrafe, "afeto e ternura" fazem efeito e deveriam atuar, até mesmo, acima do nosso bem humano maior: a nossa inteligência. Afinal, esses indicativos de Chaplin, podem até não serem requeridos diante dos dissabores e desencontros que a vida moderna impõe à sociedade. Mas, tê-los como simples referências e/ou lembranças de que somos humanos e racionais e podem até atuar como gatilhos de defesa e superação. Sem o fogo das armas. Bem melhor: com o fogo das almas. Puro sentimento.
Pois é, o exagero de se por em confronto bélico o pensar diferente, nesses tempos pautados pelas polarizações extremadas, tem exposto o mundo ao massacre da intolerância, justo pela falta de humanização nas relações. Costumo lembrar que o verdadeiro "sapiens" se faz hoje pela agregação dos valores "culturae, susteneri e libratum". Ou seja, pela bagagem cultural adquirida, pela consciência de ser sustentável e saber agir com equilíbrio.
Infelizmente, atitudes assim não são uma prática comum, pelo que podemos extrair das péssimas lições que o cotidiano da sociedade tem nos proporcionado. Exemplos dessa natureza assustam, de tal sorte que nos deixa à deriva quanto ao que as gerações atuais passarão para as próximas. Pelo visto, a barbaridade alcançou seu ápice.
Um clássico de tamanho dissabor social advém do que se tem propagado aqui no Brasil, em termos de segurança pública. Os exemplos que partem de cima, fazem com que os que ferem as leis e os que, por missão, estão na omissão de protegê-las enquanto agentes do Estado, atuem no mesmo nível de intolerância. No mundo das reações, por vezes exageradas dessas partes, as cenas cotidianas são mesmo verdadeiras barbáries. Desumanização plena, como se uma ordem comum de uma cultura de violência estabelecida, seja o fiel retrato do que se pode chamar pejorativamente de lei.
Os casos são estarrecedores para cidadãos que, mesmo na aspereza de alguma falha de conduta, são tratados como se criminosos fossem. Pior dos mundos: muitos mal tratados ou levados à morte, sem oferecer qualquer reação que pusesse em risco a abordagem ou a própria vida do policial. Vejamos. 1) O que dizer daquele que foi posto na mala do carro policial, sufocado ainda por gás lacrimogêneo? 2) E o caso do estudante de medicina assassinado friamente? 3) Como entender o papel de um policial que dispara 11 tiros pelas costas, para quem roubou sabão de um mercado e caído sem resistência foi alvejado por uma demonstração latente de ódio? 4) Convém a um policial jogar pela ponte um simples suspeito, quando, uma vez detido, poderia cumprir sua missão de entregá-lo para uma Delegacia? 5) E o que dizer de outros agentes policiais que, mesmo diante de tanta exposição quanto ao papel da instituição, agride, covardemente, uma mulher sexagenária que procurava entender sobre a abordagem feita a familiares?
Diante de fatos tão realistas, não há como deles nos isentarmos de uma crítica mais contundente sobre que sociedade estamos por construir. Na ausência de relações mais humanas e perante um quadro de brutal polarização, está muito bem explicada a essência de uma intolerância que paira no ar. Em evidência, enfim, mais um retrocesso social que, lamentavelmente, põe a ética pública do respeito ao comportamento humano sob suspeita. Revive-se neste mundo uma nova era de invasão e domínio dos bárbaros. Agora, envolvida pelo perigo que o ódio se propaga pelo acesso às tecnologias digitais.
O desafio está em restaurar a humanidade.
* Economista e colunista desta Folha de PE.
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