OPINIÃO

Medalha do Mérito José Mariano

Discurso proferido na última sexta (13), durante homenagem recebida na Câmara
Municipal do Recife.



Há 20 anos recebi uma homenagem desta Casa, que me comoveu. Para um quase-forasteiro receber - então – o título de cidadania da Cidade do Recife era glória imerecida, que jamais pude imaginar. Certo que o fiz por conquistá-la, dada a ligação profunda, visceral, que passei a ter com o Recife, desde o dia em que aqui cheguei, cabelos longos, olhos com o brilho do sonho juvenil, o matulão de couro curtido cheio de saudades, sandálias que denunciavam a origem sertaneja como cartão de apresentação. Hoje, decorrido esse tempo em que a devoção a Pernambuco e ao seu irrequieto coração – a bela cidade do Recife - só aumentou, vejo-me aqui na venturosa circunstância de receber a mais alta Comenda da Câmara Municipal da cidade que adotei e que também, felizmente, terminou por me adotar: a Medalha do Mérito de José Mariano, cujo simbolismo queima-me as mãos como brasa. Primeiro porque uma Comenda que carrega este nome, José Mariano Carneiro da Cunha, exalta a trajetória patriótica, abolicionista, corajosa, republicana, popular e a luta por direitos e liberdades do povo, de um dos maiores filhos desta terra, embora nascido no seio da aristocracia canavieira, no Engenho Caxangá, no Município de Gameleira, hoje cidade de Ribeirão. Uma vida lendária: desde quando entrou aos quinze anos de idade, em março de 1866, na Faculdade de Direito do Recife – que o lançou na luta contra a escravidão -, passando pela convivência com figuras ilustres como Rui Barbosa, Herculano Bandeira e Joaquim Nabuco, entre muitos outros, passando pela fundação do Jornal A Província, pela questão religiosa - confronto entre católicos e maçons que o colocou em pé de guerra com Dom Vital, Bispo de Olinda - bem como pela sua fulgurante carreira política.

Vereador eleito em 1876, com uma grande quantidade de votos, gozava de imensa popularidade, conhecido como o tribuno do povo, e exerceu o mandato discutindo questões de interesse da população: segurança, salubridade, urbanização, regulamentação de preços de alimentos e cobrança de impostos, um político na verdadeira acepção da palavra, que fez uso do mandato popular para defender as causas e aspirações do seu povo. Em 1878, nas eleições para deputados gerais, candidato do Partido Liberal, foi o deputado mais bem votado no Recife. Durante o império, exerceu, por duas vezes, o mandato de deputado geral, deputado provincial em duas oportunidades e com a Proclamação da República, cumpriu três mandatos de deputado federal.

Fundou no Recife a Sociedade Protetora da Infância Desvalida, que buscava arrecadar recursos para alforriar
filhos de escravizados e financiar a sua instrução, dever que o Estada não assumia. Junto a outros abolicionistas pernambucanos fundou o Club do Cupim, que organizava fugas e levava cativos para fora da Província. Orador vibrante e polemista de escol, participou ainda do Club Popular, que reunia liberais e defendia os interesses do partido e seu ideário, em que se debatia a conjuntura política e a necessidade de se implementar práticas democráticas e amplas reformas sociais. Com o advento da República fez cerrada oposição ao Marechal Floriano Peixoto, que era virulentamente atacado em A Província.

Foi, por isso mesmo, perseguido e preso por ordem do governador Barbosa Lima, em 14 de novembro de 1893, primeiro no Forte do Brum e depois foi transferido para a Fortaleza da Laje, no Rio de Janeiro. Mesmo preso, foi candidato a deputado federal em março de 1894 e se elegeu, sendo memorável o seu retorno ao Recife, meses depois, e apesar das medidas persecutórias do Governador Barbosa Lima, “para prevenir possíveis desordens “, as comemorações duraram três dias. Em 1897, José Mariano é novamente preso em razão do estado de sítio decretado pelo então Presidente Prudente de Moraes, tendo sido solto após provar a sua inocência em relação a um atentado que sofrera o Presidente da República e que resultara na morte do Ministro da Guerra. José Mariano teve em sua esposa, Olegária da Costa Gama, dedicada parceira do seu nobre ideal abolicionista, fornecendo cobertura e abrigo aos escravos fugidos das senzalas, o que lhe renderia também grande apreço popular. Após a sua morte e a dissipação dos bens na militância política, como sói acontecer com os que a exercem com notável corte republicano, José Mariano se afasta da vida pública. Em 1903 é nomeado pelo Presidente Rodrigues Alves Oficial do Registro de Títulos, no Rio de Janeiro e se recolhe a essa burocrática atividade notarial. 

Mesmo assim, em 1912, dada a sua manifesta popularidade, volta a eleger-se Deputado Federal pelo Partido Republicano Conservador, vindo a falecer meses após. A sua popularidade devia-se, naturalmente, ao seu compromisso com a grande causa da sua vida, o abolicionismo, bem como ao exercício da política como instrumento de servir à população, mas também à sua simplicidade e proximidade com o povo, mesmo sendo um filho da elite socioeconômica do seu tempo. Anota Gilberto Freyre “que ao longo da década de 1880, José Mariano se confraternizou com o povo de forma simples e pitoresca. Comendo sarapatel e bebendo vinho ordinário pelos quiosques, como qualquer tipógrafo ou revisor de jornal.” O povo gosta de quem gosta do que é seu. É por toda essa vida de serviços ao povo recifense e pernambucano que, em 1940, esta Câmara de Vereadores do Recife recebeu o nome de “Casa de José Mariano”, em batismo que marca, por igual, uma responsabilidade com o legado do seu eminente inspirador.

E em 1968 foi criada essa Medalha com nome do patrono desta casa e é precisamente por isso que estamos aqui.

Certo que sendo Pernambuco uma pátria de poetas e pintores, pródigo em nomes que conduziram a nossa literatura e a nossa poesia a elevadas altitudes, bem assim reunindo nomes que consagraram de forma estupenda as artes plásticas e a pintura brasileiras é penosa a obrigação de se reverenciar nomes em outras áreas. Mas sendo, como o é, invulgarmente, o nosso maior patrimônio essa tradição irredenta e esse furioso e doce leonino coração libertário, são essas raízes profundas da nacionalidade que encontraram leito fértil em Pernambuco, particularmente no Recife, que desbravaram todos os caminhos da nossa trajetória como Nação.

E, por isso, os heróis da Restauração Pernambucana, os soldados intimoratos da Revolução dos Padres e os guerreiros de todas as lutas provinciais pela independência e liberdade estarão, sempre e acima, de todos os altares onde são incensados os que engrandeceram a nossa história. Por isso nomes como o de Domingos José Martins, o Padre João Ribeiro, o Vigário Tenório, José de Barros Lima, o Leão Coroado, Arruda Câmara, Bárbara de Alencar, Abreu e Lima, Padre Roma, Frei Caneca, Frei Miguelinho, Cruz Cabugá, Gervásio Pires, e tantos outros, precedem – se não blasfemo - aos nossos artistas. 
Os soldados da pátria precedem aos nossos artistas, mas estes é que alimentam a chama que faz com que os aqui nascidos estejam sempre prontos a defender a sua condição de homens e mulheres livres.
José Mariano foi um desses que ofereceu a sua vida inteira ao serviço da sua terra, o Recife, e quem defende o Recife, guarda Pernambuco e o merece. A sua história é uma ode à liberdade, à justiça, à igualdade, à política que materializa as aspirações da sociedade. Sabia que era impossível conviver com aquela escravidão odiosa, mas sabia que, além de abolir a escravidão, eram necessárias profundas reformas sociais e políticas, a fim de modificar uma ordem social e econômica de privilégios, de exclusão e de injustiças.

É por isso que na terra dos poetas e dos pintores sinto-me demasiadamente honrado em receber essa r. Comenda, porque ela carrega um nome símbolo, o de José Mariano e com ele, as marcas de todos os que amaram e louvaram esta apaixonante aldeia de pescadores, com a sua luta ou com a sua arte que, bem vista, é sempre luta em tempo integral. Além do mais, para além da simbologia consagradora do seu patrono, é uma homenagem que o povo do Recife, através dos seus legítimos representantes, presta àqueles que, porventura, tenham guardado fidelidade ao seu ideário da rebeldia que não se submete a nenhum tipo de submissão, em que os homens sempre estiveram de pé e que só se curvam para agradecer.

Creio, fi-lo, modestamente, por merecer. E nisso não vai nenhuma soberba. É que o meu amor pelo Recife é antológico, inescusável, profundo, incondicional, vitalício. Não depende dos frutos colhidos, dos lucros, cessantes ou não, nem dos feitos acontecidos, nem de glórias passageiras, mas, apenas e exclusivamente, da luz que banha a cidade, pois o Recife é, antes de tudo, uma luz, uma luz diferente, de multivioláceos tons, que me permitiu, entrando pela barra do porto, ancorar a minha jangada na escama das pedras. 

Sobre Sevilha, João Cabral de Melo Neto escreveu: “se cobre de toldos e de lona,/para que a aguda luz sevilha/ seja mais amável nas pontas,/ e nele possa o sevilhano, /coado o sol cru, ter a sombra/ onde conversar de flamenco,/ de olivais, de touros, donas”.  

O Recife é a sombra onde posso conversar sobre música, poesia, cinema, viagens, sobre as paisagens infindas, sobre a amizade, o sonho, sobre o amor e a saga dos homens.

O destino me concedeu uma gleba no território sagrado da pernambucanidade dessa secular escola de lutas e eu abracei cada centímetro desse chão indômito e finquei nele a enxada das minhas esperanças. Quando aqui cheguei ficava impressionado com aquela cidade cortada pelos rios, com seus braços líquidos se estendendo ao longo de todo o corpo. 

“A cidade é passada pelo rio
Como uma rua
É passada por um cachorro;
Uma fruta por uma espada"

Deixei-me tomar por aquele império dos sentidos. Pelos suntuosos aromas do mercado, com as raízes e especiarias invadindo as narinas sem pedir licença. Uma festa de cores, sabores e feitiços.
O que é o Recife para mim? Um destino, um lugar que me fora destinado antes, sem que eu o soubesse. Mas às primeiras expedições em seus desconcertantes encantos já ficara evidente que se tratava de um encontro marcado pela predestinação: entre mim e a penitenciária adorada, porque era visível que dela ficaria cativo para sempre, “pés de chumbo, asas cortadas", no dizer preciso de Renato Carneiro Campos, em Sempre aos Domingos. Tive um impacto visual, a princípio. Primeiro com o frenesi urbano, as cercanias de São José, com seu colegiado de belas igrejas, tinham uma atmosfera familiar, com aquele comércio de tudo. O comércio dos ambulantes, os vendedores de frutas com seus pregões a denunciar as estações, os engraxates, as mulheres vendendo cocadas, os executivos apressados, os bancários de cintura redonda, as bancas de jornais, as lanchonetes populares, o caldo de cana no Cascatinha,  o bando de estudantes com farda de escola pública, os bondes elétricos, os sebos, as lojas de discos, a Livro 7, os comerciários, o Recife dos Mascates, uma cidade vibrante em meio à desigualdade que marca o Nordeste, a região mais pobre do País. Que imagem a das pontes e do casario, fazendo flutuar o Recife, como uma noiva formosa por todos desejada, a noiva da revolução! Aquela mistura de povo fala de uma cidade viva, desigual, mestiça, potente, criativa, que se expressa nas ruas em todo o seu contraditório esplendor. Essa marca da mistura tem muito da minha Juazeiro natal, inventada pelo Padre Cícero, ao estimular que nordestinos de todos os quadrantes fossem sentar praça naquele entreposto comercial marcado por forte religiosidade popular, naquele oratório da dor e da esperança que nunca morre. Nas festas populares, especialmente no carnaval, essa mistura ganha a grandiloquência do espetáculo, a sina dos desassistidos e aventureiros sobe à ribalta onde o povo desfila a sua alegria e as suas lágrimas, e essa simbiose se corporifica na apoteose do carnaval. Vi-me irremediavelmente afeiçoado ao frevo, ao maracatu, ao caboclinho, ao cavalo-marinho, ao afoxé, ao coco de roda, à capoeira, às orquestras de cordas, com seu coral de vozes femininas que parecem ter caído do céu, de tão divinas. 
Meus ouvidos acostumados às bandas de pífano, ao maneiro pau, aos reizados, às quadrilhas de São João, à sanfona de Gonzaga, à batida de pandeiro dos cegos na feira viram na monumentalidade da cultura popular e clássica de Pernambuco, uma espécie de redenção armorial. 

Sou devoto igualmente da mistura que se expressa também na religiosidade popular, a procissão dos passos, a subida ao morro da conceição, a missa de Natal no Derby, as homenagens a Nossa. Sra. Do Carmo e a pluralidade de religiões, inclusive as de matriz africana, que marca um ecumenismo saudável que vigora na cidade.

Como não amar uma cidade que professa uma fé tão ardente e tão plural?

Depois, marcou-me o Recife história, uma cidade marcada pelas revoluções que explodiram em muitos momentos da sua existência. Desde os primórdios, uma posição de altivez, jamais de subordinação, reagindo à prepotência dos invasores, à espoliação econômicas das nossas riquezas e à tirania de todos os matizes, pois um filho de Pernambuco não pode apequenar a sua história, com condutas incompatíveis com essa insurreta tradição. E essa trilha libertária está em toda a parte, nos livros, claro, que abundantemente contam a epopeia dessa escola de facas, mas nos largos das igrejas, nos mosteiros onde se tramaram tantas insurreições, nas ruas, nos becos, nas vielas, nas fortalezas, no casario colonial de beleza estupenda, nos sobrados que abrigaram sociedades secretas que lutavam por independência e liberdade.

A reação atrabiliária e violenta do Imperador e seus ensandecidos seguidores, incomodados com os ventos que sopravam de Pernambuco é a maior demonstração do vigor transformador da Revolução Pernambucana e da Confederação do Equador, para ficar apenas em dois movimentos-símbolos da história pernambucana. A reação havia de ser exemplar para inibir novas explosões nativistas que reagiam à insensibilidade dos governantes de então, crentes de que com violência e requintes de crueldade estariam sepultando os sonhos de independência, quando, em verdade, estavam sedimentando novas rebeliões. O episódio da exumação do Padre João Ribeiro após o seu suicídio e a colocação do seu crânio numa estaca, junto com a de outros revoltosos tinha a intenção não só de derrotar a revolução, mas de aniquilar os seus líderes da maneira mais cruel, retirando-lhes a vida e matando-lhes o exemplo de bravura. O arcabuzamento de Frei Caneca é outro episódio marcante da fúria imperial. Apenas nessas duas lutas provinciais por liberdade, perdemos primeiro parte do território que forma Alagoas, em 1817, depois a comarca do São Francisco, amputando Pernambuco de porções legítimas do seu território. Era necessário punir de todas as formas para sepultar em definitivo as veleidades republicanas e por autonomia. Por isso que se diz que aconformação delgada de Pernambuco é a melhor tradução da sua coragem e do seu marcante apego às lutas contra o jugo imperial e sua avassaladora exploração das províncias, para cobrir o fausto da Corte. Encontrei-me também nesse espírito guerreiro, pois viver é lutar.

Como não amar uma terra onde se tramaram tantas revoluções?

Em 1980 vim aqui estudar para o vestibular na Faculdade de Direito do Recife. Àquela época os estudantes do cariri cearense - Crajubar: Crato, Juazeiro e Barbalha - optavam por vir morar em Recife, dada a vinculação histórica entre o sul do Ceará e Pernambuco, a cana de açúcar, a Floresta Nacional do Araripe, a 1a Floresta Nacional do Brasil, instituída em 1946, e a saga dos pioneiros, os 4 irmãos portugueses, de onde descendem todos os Alencares do Brasil, Leonel, João Francisco, Marta e Alexandre, advindos de Freixieiro de Soutelo, Norte de Portugal, que cumprindo a sina de navegadores dos seus antepassados, terminaram por ajudar a povoar o sertão pernambucano que é vizinho e irmão do ubérrimo vale do Cariri. Leonel, um dos irmãos, é o avô da heroína Bárbara de Alencar que nasceu na caiçara, no velho Exu, de bravas tradições. Já naquela época, Bárbara que morou no Crato, veio trazer os filhos para estudar no Seminário de Olinda e se encantou com o espírito guerreiro das diocesanas vestes. Foi esse mesmo enlevo patriótico de quase 200 anos atrás – a alma pernambucana - que me tomou o espírito. Em três de maio de 1817 a República foi proclamada no Crato, por força do engajamento de Bárbara, dos seus filhos, da sua família e dos seus muitos amigos. Após a homilia na igreja da Sé, vertida pelo Diácono José Martiniano de Alencar, filho de Bárbara e pai do escritor José de Alencar, aprendida no secular seminário, saem em passeata, inflamados pelos ventos que sopravam de Pernambuco e substituindo a bandeira de Portugal, hasteiam a bandeira branca da República. 
“A mais bela e a mais inútil das revoluções “, na avaliação imprecisa de Câmara Cascudo.

Digo isto para ressaltar que a identidade do Cariri com Pernambuco é imemorial. Por isso a sentença de que há no massapê do cariri o mesmo fermento revolucionário da alma pernambucana. Barbara fez o caminho Pernambuco-Ceará-Pernambuco, igual ao de Luiz Gonzaga em parte da sua vida. Eu já me filiei à vocação de peregrino de Miguel Arraes de Alencar: nascido nos sertões de mandioca e farinha do Ceará veio assoviar o sotaque pernambucano, sem jamais perder a vinculação com a terra de onde vinha, marcada por coronéis, cangaceiros e fanáticos.

Na Faculdade de Direito pude consolidar minha ligação com o Recife-tradição, na síntese que a firmou como templo das escolas jurídicas do País: fermento revolucionário e abrigo conservador. Nela, lutamos pelo retorno à Democracia, pois a Ditadura, no início dos anos 80 ainda mantinha em atividade os seus recalcitrantes apoiadores. Infelizmente esses apoiadores proliferaram nos últimos tempos como célula cancerosa que corrói os fundamentos de uma civilização democrática como a que estabeleceu a Constituição, que temos o dever de defender e zelar. Certo que já havia militado no movimento sindical bancário, como funcionário do Banco do Brasil e no movimento estudantil encorpamos a luta pela redemocratização que a sociedade brasileira de há muito acalentava e por ela duramente lutara.

Foi marcante em minha formação a recepção que fizemos ao então ex-Governador Miguel Arraes no Aeroporto Regional do Cariri, em 15.09.1979, antes mesmo de chegar em Recife para o famoso comício de Santa Amaro, que ali reuniu uma multidão sem tamanho. Essa recepção a Arraes, fora puxada pelo eminente líder político da região, homem de sólidas convicções políticas de centro-esquerda, Eudoro Santana, pai do hoje Ministro Camilo Santana, ex-governador do Ceará, Senador e que figurava entre os jovens que foram reverenciar o mais importante líder popular da história brasileira, um filho de agricultores cearenses, às voltas com severas estiagens: Miguel Arraes. A Faculdade de Direito do Recife, onde Arraes também estudou, foi uma experiência magnífica, a de fortalecer as convicções democráticas, a de encontrar e descobrir companheiros e amigos muito queridos que me acompanham na marcha dos anos e de sedimentar um amor genuíno pelo velho e bom Recife mal-assombrado. Aquele pátio, aqueles anfiteatros, aquele salão nobre, aquela biblioteca de livros raros, aquelas janelas seculares povoam a minha vida como um morcego doméstico pendurado nos caibros da história.

Um capítulo ainda, o da minha vivência – por 10 anos - na alfandegária zona, investido na condição de procurador da Fazenda Nacional, carreira na qual me encontro até hoje após 32 anos de serviço àquela notável instituição.

O exercício funcional em defesa da Fazenda pública, fez-me cativo da área portuária, com os seus magnetizantes encantos. A par dos deveres funcionais, sempre rigidamente cumpridos, pude circular pelo coração do Recife, aquele miolo do Recife Antigo que mistura a vocação ultramarina, mirando mares nunca dantes navegados, ao voo cego dos pombos que cobiçam o farelo dos moinhos e o convés dos navios de bandeira estrangeira. Quando o Barão do Rio Branco, sentinela indormida, foi trocado de lugar na praça e a própria praça foi trocada de lugar, pareceu-me que a morte daquelas castanholas decretava o fim da civilização. Mas as cidades se reinventam.

Abriu-se ali uma esplanada onde o futuro começou a ser escrito. 

“Eu vi o mundo e ele começava no Recife”.

O arsenal da Marinha, a rua dos judeus que me acostumei a chamar de Rua do Bom Jesus, o território livre que foi perdendo terreno para os territórios sitiados, a rua da Guia, da Moeda, o Cais da Alfândega, a Cruz do Patrão, a memória da boêmia do Recife que ali instalou o seu quartel general. 

Enquanto pensava estratégias para defender a fazenda nacional dos tantos ataques que sempre e permanentemente lhe são perpetrados, via pelo lado de fora da janela o voo articulado dos verdadeiros donos do bairro. Do prédio do moinho chamado Recife, ao edifício do Ministério da Fazenda, ao mastro dos navios, ao molhe dos arrecifes, ainda antes de serem habitados pelas mãos mágicas do Mestre da Várzea e seu monumento à virada do milênio, que toca o sagrado através da sublimação do profano. 

Visitei todos os recantos onde pudesse eu aprender coisas sobre o Recife, os lugares simples, outros nem tanto, a Porta da Terra, o Anfhitrião, o rosbife de Vera, o uísque de Waldemar Marinheiro, a atmosfera irlandesa do Scoth Bar. 

Era um privilégio diário, frequentar, viver, trabalhar no coração do Recife, o lugar onde a cidade nasceu e a partir do qual todas as distâncias foram medidas. A Casa de Banhos, depois da travessia da pequena canoa, era a visão da bem-aventurança, o meu amado Recife visto a partir da perspectiva do mar, o cais José Estelita, na bacia do pina, parecendo que a cidade flutua numa cama d’água, macia e sensual, o conjunto arquitetônico que faz parecer o Recife uma pequena Istambul, com telhados por onde os poetas faziam escorrer as suas lágrimas, com minaretes que pedem a nossa contrição e que guardam segredos dos tempos de Nassau, com paixões que perderam calor, mas deixaram as suas marcas na paisagem líquida, na memória dessa cidade cruel, lendária e invicta. 

São 40 anos de Recife. É tempo suficiente, não tenho como esconder, é o tempo da vida inteira, da luta, da guerra, do amor, da família, dos amigos. Por isso que não é uma paixão serena, senão uma paixão abrasiva que me consome. 

Foi aqui que instituí todos os meus domicílios. Os oficiais de justiça, se me quiserem de alguma coisa notificar, pois há sempre alguém disposto a protestar um título prescrito na gaveta, só poderão procurar-me num único lugar sobre a face da terra: no Recife. Claro que também matriculei meus versos no cartório do Recife, pois em outro lugar não passariam de frases soltas. 

Decerto vós que ouvis tendes razão em estar pensando que vai certo exagero nessa paixão desmedida, excessivamente derramada. Todavia, fui consultar o que a história registrou em 5 séculos. Em meio a 500 anos em que o tempo escorre nesses alagados insurretos sou apenas um suspiro de 3 segundos, mas vejam o que consegui recolher nesse garimpo confirmatório, nessa crisma nassoviana. 

Não estou sozinho:
“Há tempo que não te vejo!
Não foi por querer, não pude.
Nesse ponto a vida me foi madrasta,
Recife.
Mas não houve dia em que te não sentisse
Dentro de mim:
Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos,
No sangue, na carne, Recife!” Manuel Bandeira
 
“Mas como a gente não pode
Fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida,
num diabólico festim.
Por isto no Bar Savoy,
O refrão tem sido assim:
São trinta copos de chope,
São trinta homens sentados,
Trezentos desejos presos,
Trinta mil sonhos frustrados” Carlos Pena Filho 
“Pernambuco marca tanto a gente que basta dizer que nada, mas nada mesmo nas viagens que fiz por este mundo contribuiu para o que escrevo. Mas Recife continua firme“.
escreveu Clarice em A descoberta do Mundo 

“ Recife romântico dos crepúsculos das pontes,
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos
Holandeses
Que assistem agora ao movimento das ruas
Tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem dos aviões
Para as costas
Do
Pacífico
Recife romântico dos crepúsculos das pontes
E a beleza católica do rio. Joaquim Cardoso, 1947
“ Outras cidades serão mais belas – o mundo está 
Cheio de corpos lindos –
Mas nenhuma delas me daria
Esta sensação permanente de surpresa e descobertas,
Ser único e insubstituível, cuja forma,
Odores, maciez,
Eu reconheceria de olhos fechados Recife,
Corpo 
Amado. “ Luzilá Gonçalves 

“De que adianta se o Recife
Está longe
E a saudade é tão grande
Que eu até me embaraço;
Parece que eu vejo o 
Valfrido Cebola no passo 
Aroldo Fatias, Colaço
Recife está dentro de mim“ Frevo nº 1, Antônio Maria           
Nesse ponto Antônio Maria e Clarice Lispector se igualam, porque a escritora ucraniana cuja passagem na infância a marcaria profundamente afirma-o, sem pestanejar:
“ O Recife está todo vivo dentro de mim “.

Então, penso que o meu derramamento, no mínimo, está em boa companhia, e, por isso, suplico-vos compreensão pela extensão dessa singular declaração de amor, em tempos dessa moderna e célere telegrafia.
Mas caminho para o final, que paciência tem limites.

E repito o que disse antes: fi-lo por merecer essa comenda com o nome de José Mariano e vos lembro, pedindo vênia, que nisso não vai nenhuma soberba.

Finalmente, quero expressar a minha fé na vida.

Boa parte dessa crença se faz com o afeto repartido com os amigos. 

As nossas tantas imperfeições parecem perder combustão diante do cimento dessa dimensão maioral do afeto compartilhado; e as nossas virtudes, escassas virtudes, quando reunidas, quando se dão as mãos, parecem ganhar energia, vivacidade, cor, e nos fazem professar, juntos um cântico de esperanças.
A humanidade tem jeito.

Os amigos, são uma dádiva: obrigado, por me fazerem acreditar no sublime, por renovar a minha fé. Repito-o à exaustão: das quatro estações, a vida só tem mesmo duas: os amigos e os amigos!
“ Um galo sozinho não tece uma manhã “. 
Mas há uma espécie de amizade qualificada, mais grave, mais cara, que faço questão de anotar no exercício desse tabelionato amoroso: a família. 
Estão aqui irmãos, irmãs, cunhadas, cunhados, sobrinhos e sobrinhas, tios, primos e primas, a quem expresso minha gratidão por estarem aqui trazendo a expressão viva daqueles que vindos do Araripe, a terra dos ancestrais, e depois de por longos anos experimentarem a graça de viver no Recife, na Boa Vista de modestos e arrebatadores encantos, também se encantaram nesta linda cidade.

A Zuzu e Zeraldi, o meu tributo público de amor.

E tem a família que a gente escolhe para seguir a navegação que, dure quanto durar, é sempre de longo curso.
A que permanece unida não por obrigação, que nos ajuda a desafiar o torpor do cotidiano, que nos dá o prazer de colher flores no campo, e encher com elas o vaso da mesa, para saudar um dia de sol, semear a alegria quando a melancolia nos bate à porta.

Filhos e netos é uma alegria sem tamanho.

A minha filha Lara que cá não está porque mora em Portugal, na cidade-irmã do Recife, a cidade do Porto.
A ela e sua família, Vanessa, Sophia, Felipa e Benício, a expressão do meu amor. Filipa é um raio de sol, com os cabelos cor de ouro, com os olhos da cor de azul anil!  

E Tomás, filho amado, com a nossa querida Maria Eduarda, filha também, que nos deram dois motivos acrescidos para viver: Dudu, que é a alegria das minhas horas na maturidade, um canário que veio cantar à minha janela, com a sua personalidade interrogativa, o meu pequeno Sherlock e a lua que invadiu o meu céu há poucos meses: Maria, essa pedrinha preciosa que faz o mundo se acender toda vez que me olha com doçura. 

Por fim, não menos importante, Vanessa, minha companheira da vida inteira, que pinga o açúcar dos canaviais da Barbalha de onde vem, sem deixar de ser, sempre, mulher de opinião, afirmada não raro com a categoria de quem tem razão, com olhos que de há muito me aprisionaram em voluntária e abençoada prisão.  
Companheira de uma longa travessia, alta tensão, baixa tensão, estamos juntos, cada vez mais firmes, no propósito do amor que se renova a cada dia. 

Quando recebi o título de cidadão recifense, em 03 de setembro de 2004, nesta mesma tribuna, há vinte anos, afirmei que o Recife era lugar escolhido para viver e ser enterrado, lugar escolhido para a eternidade.

Hoje reafirmo o que disse, embora de outro modo: ao invés de ser enterrado no Recife, quando chegar a hora, que espero seja rudemente impontual se demore bastante, quero mergulhar nas águas turvas do Capibaribe e Beberibe, para gozar a eternidade na imensidão azul do oceano atlântico.

Recife, Casa de José Mariano, aos 13 de dezembro de 2024, dia de Santa Luzia.            


* Secretário-executivo do Ministério do Empreendedorismo, Microempresa e Empresa de Pequeno Porte.