MÚSICA

Toninho Geraes x Adele: especialistas debatem plágio após decisão da Justiça favorável ao sambista

Após 6ª Vara Empresarial do Rio proibir comercialização e reprodução de 'Million years ago', Universal Music Publishing Brasil pediu a suspensão de liminar, alegando a utilização de 'um clichê musical' para justificar a semelhança entre as canções

Após Justiça determinar ação em favor de Toninho Geraes, o caso cabe recurso por parte de Adele - Reprodução/Instagram

Parodiando a máxima do químico francês Antoine Lavoisier de que “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, Chacrinha dizia que “nada se cria, tudo se copia”. A Pablo Picasso, o pintor espanhol, credita-se a citação “bons artistas copiam, grandes artistas roubam”. A frase, porém, pode ter sido cópia do que escreveu em um de seus ensaios o poeta americano T. S. Eliot. Convicto de que a cantora Adele o plagiou, o compositor mineiro Toninho Geraes não quer saber de nada disso. Ele quer, sem meias palavras, justiça.

A celeuma em torno da acusação do sambista à estrela pop britânica ganhou novos capítulos nos últimos dias. Não é de hoje que Toninho sustenta que “Million years ago”, canção lançada por Adele em 2015, no álbum “25”, é plágio de seu samba “Mulheres”, gravado por Martinho da Vila, dez anos antes, no disco “Tá delícia, tá gostoso”, de 1995.

Na última sexta-feira, o juiz Victor Torres, da 6ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, deu decisão favorável a Toninho. Na liminar expedida pelo magistrado, determina-se que os réus — Adele, seu produtor Greg Kurstin, coautor da faixa internacional, a gravadora Sony, a gravadora XL Recordings e a Universal Music Brasil, editora de Adele no país — “se abstenham, desde logo e globalmente, de utilizar, reproduzir, editar, distribuir ou comercializar a música ‘Million years ago’, por qualquer modalidade (...), sem expressa, prévia, formal e específica autorização” do compositor brasileiro, sob pena de multa de R$ 50 mil por ato de descumprimento.

 

A música, no entanto, até o fechamento desta edição, ainda estava disponível no Spotify, no Deezer e no YouTube. Ontem, no playground de seu prédio, no Rio, Toninho Geraes comentou o caso com jornalistas.

— Foi uma decisão do juiz em cima do que a gente apresentou. Ele percebeu que a música realmente tem toda essa questão de plágio — diz. — Eu espero que eles cumpram as decisões da Justiça, mas se eles não cumprirem, será que eu vou ter que fazer alguma coisa? Porque R$ 50 mil de multa por dia, isso é cafezinho pra eles.

Segundo a advogada Deborah Sztajnberg, que representa o compositor mineiro, as músicas continuam disponíveis nas plataformas porque parte dos réus, à exceção da Universal, ainda será intimada. Stztajnberg acredita, no entanto, que Adele está muito ciente do problema que envolve o seu cliente.

— Ela e o time dela certamente já sabem. Primeiro que não é de hoje que essa questão existe. A gente só entrou com processo agora porque o tempo todo tentamos fazer acordo. Ela tá cansada de saber. O primeiro contato foi há muitos anos, e ela nunca se manifestou, nunca respondeu, nem ela, nem produtor, nem gravadora. Mas a gente tenta acordo até o momento em que fica inviável. Ela está ganhando milhões em cima de uma coisa que não é dela — afirma a advogada.

Em sua decisão, o juiz Victor Torres reforça que, embora não haja prova de que se trata de plágio, “há relevantes semelhanças melódicas” entre as duas canções. Os advogados de Toninho contrataram uma banda para executar as duas músicas em estúdio, e anexaram as gravações no processo. Para o juiz, a sobreposição das gravações indica “quase integral consonância melódica”.

— Acréscimos e exclusão de notas de passagem, outra tonalidade e andamento servem para o propósito da maioria dos plagiadores: disfarçar o ilícito — diz Fred Biasotto, produtor musical que cuidou das gravações encomendadas pela acusação. — Transpusemos as duas músicas para um mesmo tom, andamento e base instrumental. Com isso, as similitudes e identidades ficaram mais evidentes.

Plágio x Clichê musical
Na última segunda-feira, a Universal Music Publishing Brasil entrou com um pedido de suspensão da liminar expedida a favor de Toninho. No texto, os advogados Mateus Aimoré Carreiro, Márcia Cunha e Barbara Gaudencio de Sousa, do escritório Veirano Advogados, que representa a empresa, garantem que não há plágio. “As semelhanças entre as duas canções (...) se devem, em síntese, ao fato de que várias canções se utilizam de um clichê musical”. Neste caso, reforça a defesa, trata-se de uma Progressão de Acordes pelo Círculo de Quintas, “uma sequência harmônica amplamente conhecida e utilizada desde o período barroco (exemplos em Vivaldi, Bach e Händel)”. Procurada pelo GLOBO, a equipe de advogados preferiu não comentar o caso.

Para Daniel Campello, advogado especialista em direito autoral e executivo da ORB Music, a sustentação do pedido da Universal faz sentido.

— Há uma música do turco Ahmet Kaya, “Acilara Tutunmak”, de 1985, que também foi apontada como inspiração para “Million years ago”. A música do Toninho, então, seria plágio da música turca? — questiona o advogado. — Esse termo “plágio” tomou na cabeça das pessoas o lugar da palavra similitude. O fato de haver similitude entre músicas não indica necessariamente plágio. O principal requisito para haver plágio é a má-fé, o dolo. O plagiador é um impostor, o que não ficou provado — conclui.

Além da derrubada da música de Adele, a ação movida por Toninho contra a cantora e companhia exigia que ela não interpretasse mais a “canção-plágio” em suas apresentações. E pedia, inicialmente, R$ 200 mil de indenização ao compositor, além de repasse proporcional de todo o valor de direitos autorais que Adele teria recolhido desde que lançou “Million years ago”, em 2015.

Para o advogado Daniel Valle, especialista em propriedade intelectual e sócio do escritório Costa&Valle Advogados, o pedido feito por Toninho Geraes levanta duas questões principais: o prazo prescricional e a abrangência das receitas a serem incluídas.

— Toninho alega ter tomado ciência do suposto plágio apenas em 2020, o que interromperia a contagem da prescrição até então. Caso essa tese seja aceita pelo Judiciário, ele poderá pleitear rendimentos retroativos desde 2015, já que violações continuadas de direitos autorais podem estender o prazo para reparações — afirma Valle.

Gringo fã de samba
Na decisão do juiz Victor Torres, parece ter pesado, ainda, o fato de que Greg Kurstin, parceiro de Adele na composição de “Million years ago”, é fã declarado de samba. Kurstin chegou a cursar cadeira sobre música brasileira na faculdade e já compartilhou em suas redes sociais uma música de Paulinho da Viola.

— O magistrado destacou que há verossimilhança na alegação de que Greg Kurstin, um dos compositores da música de Adele, poderia ter conhecido “Mulheres” antes de compor a canção. É um elemento crucial em ações desse tipo, que carecem de critérios objetivos e dependem de uma análise contextual e, em boa parte, subjetiva — diz Daniel Valle.

Procuradas pela reportagem, a Sony e a Universal não se manifestaram sobre o caso. Sobre a permanência de “Million years ago” no streaming, as plataformas Deezer, Spotify e YouTube também não retornaram aos pedidos do Globo.