Crítica e ensaísta Beatriz Sarlo morre, aos 82 anos
Autora de vinte livros e reconhecida por suas análises culturais e políticas, a acadêmica argentina sofreu um derrame
"Não entender" é o título que ela escolheu para suas memórias.
Porque a procura e a ausência de compreensão foram, disse, a sua “experiência constitutiva”, o motor íntimo que a levou a escrever, debater e refletir sobre a cultura e a sociedade, sobre a literatura e a política, os grandes temas aos quais dedicou sua vida.
Durante quase seis décadas esse impulso orientou a produção intelectual da crítica, ensaísta e professora argentina Beatriz Sarlo, desenvolvida principalmente na universidade pública e em diversos meios de comunicação, incluindo o jornal espanhol El País.
Até sua morte em Buenos Aires, nesta terça-feira, aos 82 anos.
A carreira de Sarlo foi marcada pela preocupação com o rigor no estudo, uma curiosidade dessacralizante sobre o passado e um ouvido atento às palavras do presente, além do compromisso com a realidade nacional, para debater ideias além de sua área de especialização, a literatura.
A partir daí, com uma perspectiva progressista, a sua figura como acadêmica e autora de vinte livros transcendeu as questões que desafiavam o seu certo elitismo, até se tornar amplamente reconhecida como uma polemista dura e lacônica e uma analista independente das vicissitudes da Argentina recente.
A saúde de Sarlo começou a piorar após a morte de seu último companheiro, o cineasta Rafael Filippelli, em março de 2023. Há três semanas ela sofreu um derrame e foi internada.
Nascido em 1942, Sarlo foi criada em uma família antiperonista, mas logo se envolveu com o peronismo católico.
Estudou Letras na Universidade de Buenos Aires (UBA) e, no final dos anos sessenta, voltou-se para a militância no comunismo maoísta.
Com o tempo, as suas posições políticas mudariam para uma perspectiva social-democrata.
“Beatriz é extraordinária em sua capacidade de trabalhar [...] Ela levanta de manhã e escreve dois capítulos de um livro, depois faz quatro reuniões, e depois escreve de novo”, definiu certa vez o escritor e crítico Ricardo Piglia (1941-2017), que compartilhou vários projetos culturais com Sarlo, como a emblemática revista Los libros (1969-1976). Naqueles anos, ela escreveu também para diversas publicações do Centro Editorial Latino-Americano, uma experiência de divulgação massiva e popular da história e da literatura.
Durante a ditadura militar argentina (1976-1983), Sarlo, como tantos outros acadêmicos e intelectuais, se refugiou na chamada “universidade das catacumbas”, grupos de estudo em espaços privados que sustentavam a vida cultural do país.
Em 1978, junto com seu parceiro da época, o sociólogo argentino Carlos Altamirano, além de Piglia e ativistas comunistas, fez parte da fundação da revista Puntos de Vista, da qual seria diretora até 2008.
O projeto nasceu de forma quase clandestina e acabou se tornando um prestigiado espaço de criação, discussão e divulgação intelectual.
Com a volta da democracia, Sarlo ingressou no Governo de Raúl Alfonsín (1983-1989). Foi sua única experiência próxima ao poder político, desde então recuperou o papel de observadora intelectual e fez críticas ácidas aos sucessivos governos argentinos.
As suas intervenções mais notáveis foram contra as administrações kirchneristas (2003-2015), das quais foi firme opositora.
Ela considerava o atual presidente, Javier Milei, “um populista de direita”, com “uma base autoritária”, modos “vulgares” e sem “grandes ideias”.
Em 1984 retornou à UBA, como professora de literatura argentina.
Lá formou gerações de estudantes, aos quais transmitiu suas leituras de Roland Barthes, Walter Benjamin e Raymond Williams. Também ministrou aulas e cursos em universidades europeias e dos Estados Unidos.
A partir de sua atuação na academia, consolidou a construção do cânone literário que entronizou Juan José Saer (1937-2005) como o grande escritor argentino da segunda metade do século XX.
Há 20 anos, começou a se afastar do ensino universitário e se aventurou na mídia de massa. Teve múltiplas aparições na televisão e colaborou frequentemente nos jornais Clarín, Perfil e La Nación. No El País escreveu colunas entre 2016 e 2023.
Desde que lançou em 1982 seu primeiro livro, "Literatura e Sociedade", em coautoria com Altamirano, nunca parou de publicar.
Entre seus numerosos títulos estão "Una modernidad periférica" (1988), "Borges, un escritor en las orillas" (1993), "Escenas de la vida posmoderna" (1994), "La máquina cultural" (1998) e "Tiempo pasado: cultura de la memoria y giro subjetivo" (2005).
Nos últimos dois anos, Sarlo dedicou-se à escrita das suas memórias, "No entender", cuja publicação a editora Siglo XXI anunciou para o próximo mês de fevereiro.
“Pode-se dizer que só me interessei pelo que não entendo, o que também pode significar que não cheguei a entender nada”, disse ela em 2022 em entrevista ao La Nación. “Vai ser meu último livro [...] em algum momento vou morrer.”