A poesia de Tito Lívio - amor em tempos graves
Surpreende sempre, e muito, quanto num poeta contemporâneo a dicção clássica, o registro antigo voltam revigorados. Como se um Hermes inesperado trouxesse vigor a um campo agreste: o da poesia desses tempos. Com sinais claros de sua modernidade no cabresto posto às palavras; o poeta já suspeita que o verbo vem até o limite; o mais, o havido de mais caro, fica entranhado na memória da pele: Não me deixes palavras, tenho mais/Constante guardião dos meus segredos.
O apelo à urgência do viver faz ver em Tito Lívio Lisboa um poeta precocemente madurado: O amor se faz presente/ Numa carne macia/ Na noite que se perde/ Lucidez de um dia. Dificilmente se vê, conjugados, juventude e juízo. Mas um poeta atento ao mundo e às formas poéticas, desloca o calendário em dias de intensidade: E eu durmo, durmo triste e tão sozinho/ Pensando no seu cheiro e no que fomos. Quando o corpo canta – e aqui a gente quase recebe o eco do verso magistral de Safo, poeta que Platão, Píndaro e Aristóteles louvaram. O verso célebre de Safo – ego de mona cateudo [e eu durmo só] – vem dos anos 580 a. C. Os de Tito Lívio Lisboa, em pleno século 21; e no entremeio, o espírito, empresa humana e sem tempo, quando o desejo, nele, se faz verbo.
E, no entanto, o poeta sabe que a vida vale muito mais que um verso: Vibra polinizada em comoção/ No mar desse enigma controverso/ Muito mais que mistérios em canção/ Muito mais que poema só em verso. O tom elegíaco se renova aqui num poeta moderno que reforma a sensibilidade da perda, a dura administração da perda: Lembro-me do teu nome/ Mar adormecido / Quem és, quem foste/ Farol perdido. Essa, uma vivência de todos os tempos, enquanto houver o humano; mas aqui, transformada em experiência pelo leitor – que pode ou não partilhar das mesmas funduras abissais.
Fica a memória; temos melhor o que perdemos; esse quinhão ninguém nos arrebata; entranhada em nós, somos nossa memória. Foi quando ao derradeiro/ Da semente do meu tempo/ Findou-se, sempre finda/ O gesto calmo de um vento. A poética de Tito Lívio se levanta, não contra a morte, acidente natural, mas contra o esquecimento, risco cultural: Repto contra o instante/ Da pétala mais dura. Das coisas que passam seus versos celebram o havido, o vivido: Os cabelos molhados/ De ocultas maresias/ Transcendem tempestades/ Nas noites mais vazias. Poesia de sensualidade, mas sem derramamento; como se um cabresto posto sobre a sensação, a direcionasse a modo de fazer render o poema: Penso, quero, desejo...tudo alento/ Para te relembrar das nossas danças/ Nada adianta e o adeus fere por dentro/ Deita a separação nas relembranças.
No entanto, nele, sensualidade e sentimento se entrelaçam: Quando depositava meus tormentos/ Em teus acasos cheios de ternuras/ Nada havia, porém, luas escuras/ A abrigar, a acolher meus sentimentos. No leitor atento, o leitor de poesia, há de ficar esse verso: em teus acasos cheios de ternura. Confesso que olho para esses versos cheio de inveja. Assim com um outro, lá adiante: O amor de luta em leito serenado. Então, se há amor quando ilumina, há poesia quando a linguagem canta e embala o imaginário do leitor. No que ficamos gratos a Tito Lívio por sua poesia.
Notável é ver como a experiência – real ou sonhada, como requer Baudelaire – madura o poeta: Meu amor é triste; feito só de enganos/ Como viagens feitas de agonias/ Horas ignotas, lúgubres e frias/ Triste como o silêncio dos meus anos.
Em Tito Lívio há a descoberta de um ritmo que faz sua marca, sua voz – e o singulariza: Te liberto do fim e do começo/ Das mãos quando feridas, quando abertas/ Do grande mar de chuvas tão espesso. Surpresa é ler, lembrando o ritmo em Cecília Meireles, esse Tito que parece poeta sem tempo: Tudo era tão belo/ Mas nunca foi meu/ Passou como passa/ Um vento de adeus.
De tal modo o poeta trabalha seu texto que, aqui e ali, o ouvido do leitor lembra a lima que o poliu; basta ver o preciosismo desse verso: O luar a espalmar espelhos lhanos. Como quem sente pesar o que herda, os velhos signos, como ele diz; como quando a gente desloca um objeto de sua função e faz ele ressignificar. Outra vez vem um verso cuja laboração diz de um poeta de dicção toda contemporânea: A precária ternura ao fundo da alegria. O verso a pedir do leitor secreta conivência; e deixe velado, mesmo o óbvio: a ternura que brilha na alegria – e que nossa desatenção ofusca.
Há que louvar nesse poeta o equilíbrio entre a poesia como malabarismo verbal e a poesia voltada para o umbigo; uma e outra exibicionistas. A que faz Tito Lívio trabalha o material de seu tempo, a sensibilidade de seu tempo: Do meu corpo coberto por espadas/ Do meu peito de homem sem mais nada/ Das tantas tempestades da paixão. Disso digo poesia madurada, agora de tempo refletido: Irei embora triste e cabisbaixo/ Mas com nosso roteiro em minha mão/ E as rosas setembrinas dando cacho.
Na contramão do desgaste da imagem do amor, do amor, portanto, em tempos agrestes, a poética de Tito Lívio revigora o imaginário do amor, como seus congêneres provençais, séculos atrás: À distância amarei, amarei mais/ E não me poderás dizer que não/ Pois no sonho és eterna e não fugaz. E tal deslocamento faz sua força de renovação; como quem monta no inventário o eixo de sua invenção. Um poeta que leu poetas; frequentação fecunda.
Queria voltar ainda à surpresa; surpresa de ver a libido transfigurada em versos: Nua, os braços de fora em corrupio/ Se faz pétrea no mar...no mar devasso/ E de lívida faz-se louca e em cio. Desparzindo seus véus de rubro amasso. Ou noutro passo: E cante com a beleza em cada fado/ Capaz de comover o então momento/ De tal forma que eu fique em pensamento/ Junto ao teu sexo lépido e sagrado. Moral jovem, lépida, isenta de peso, de culpa – sagrada, portanto.
Há juventude também nos versos concisos – ou: com siso? – onde parece ecoar a gravidade de um Ricardo Reis: Não sei por que chorar/ Se tudo nos é findo/ O breve transformar/ É-nos bem-vindo. Fosse lição (a poesia não dá lições; apenas, e não é pouco, alarga modo, da necessidade da alegria de sentir), fosse lição seria menos a epicurista e mais a spinozista, a da necessidade da alegria. Uma alegria ler poeta assim: E assiste/ laboriosamente o espetáculo de ser/ Só ser; nada além. Tito Lívio, poeta raro; necessário, em tempos agrestes.
* Escritor e presidente da Academia Pernambucana de Letras.
___
Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião do jornal. Os textos para este espaço devem ser enviados para o e-mail cartas@folhape.com.br e passam por uma curadoria para possível publicação.